Yellowstone: Tradição, Família e Violência na Fronteira Rural do Século 21


Na série Yellowstone, tudo o que John Dutton (Kevin Costner) quer é viver a sua vida tranquilamente e garantir que seus filhos estarão preparados para herdar e proteger o maior rancho de gado dos Estados Unidos, uma bela e paradisíaca propriedade que está em sua família há sete gerações. Porém, diferentes agentes estão interessados em seu grande pedaço de terra: o poder público a quer para expandir a zona urbana, líderes indígenas querem reivindicar suas terras ancestrais, empreendedores querem construir resorts de férias e, na terceira temporada, investidores financeiros pretendem bancar a construção de um aeroporto no coração do seu vale.

Todos esses conflitos oferecem o cenário perfeito para o roteirista Taylor Sheridan, co-criador da série, continuar na temática das atuais fronteiras da civilização, explorando o que acontece em lugares e situações que parecem inalcançáveis para o Estado de Direito e que operam sob suas próprias regras. O autor começou a tratar disso no cinema, no que ele chamou de sua “trilogia da fronteira”, que viria a se tornar uma quadrilogia.

A trilogia é formada por Sicario: Terra de Ninguém (comentário aqui), que mostra as zonas cinzentas criadas pela guerra às drogas, A Qualquer Custo (crítica aqui), que mostra dois irmãos assaltando bancos para quitar as dívidas da família, e Terra Selvagem (crítica aqui), que aborda a marginalização social e o abandono de populações indígenas nos Estados Unidos. A continuação Sicário: Dia do Soldado (crítica aqui), cuja trama explora as implicações de uma convergência entre a guerra às drogas e a guerra ao terrorismo, transformou o conjunto de filmes na “quadrilogia da fronteira”.

Sheridan aborda vários desses temas em Yellowstone, uma perfeita mistura de O Rei do Gado com O Poderoso Chefão, com alguns toques de Succession (análise aqui). O drama novelesco e as ações criminosas podem ficar exagerados em alguns momentos, mas o estilo faroeste é garantido durante a maior parte do tempo.

O Homem

Yellowstone é, acima de tudo, uma ode à vida no campo. Sempre que possível, os realizadores interrompem os acontecimentos principais da trama e apenas mostram os personagens apreciando as belas paisagens, cuidando de cavalos, testando as habilidades dos vaqueiros ou acordando antes do nascer do sol e preparando um café antes de começar o dia. São pequenas coisas, que não possuem muita significância para a história, mas que podem ser o principal atrativo para quem estiver disposto a ser transportado para o lado mais simples daquele mundo.

A série também se preocupa em representar a cultura e os costumes comuns em muitas cidades do interior dos Estados Unidos: os rodeios, os bares de música country, as brigas de bar, a vida no alojamento dos peões, o pôquer de peão, etc. É uma realidade dificilmente representada na televisão de forma clara e honesta, desprovida de julgamentos e sem reforçar estereótipos, apesar de alguns deles de confirmarem.

O plano inicial de John Dutton é que seu filho mais velho, Lee Dutton (Dave Annable), tome seu lugar na gerência dos negócios da família, mas o rapaz está mais interessado na vida de vaqueiro do que na vida de empresário. O patriarca precisa então lidar com seus três outros filhos e prepará-los para cuidar do rancho, uma tarefa que está se mostrando muito complicada ao longo dessas três temporadas.

O vaqueiro e veterano de guerra Kayce Dutton (Luke Grimes) está casado com uma indígena, Monica (Kelsey Asbille), e morava com ela e o filho em uma reserva indígena vizinha do rancho. Jamie Dutton (Wes Bentley) é o advogado e protetor da família no que diz respeito a assuntos legais, mas suas ambições políticas às vezes o afastam do pai. E Beth Dutton (Kelly Reilly), uma impiedosa, inteligente e agressiva operadora financeira, é a mais instável e eficaz dos três. Teoricamente, o trio possui habilidades que se complementam, mas nada é tão simples no relacionamento entre os irmãos. Tanto eles quanto John são marcados por traumas do passado, revelados em flashbacks em alguns episódios.

A família é completa por Rip Wheeler (Cole Hauser), o capataz do rancho e homem de confiança de John, além de ser um dos personagens mais carismáticos da trama. Suas atitudes são sempre decisivas e brutais, e ele só contém sua ríspida sinceridade quando está lidando com o chefe ou com Beth, que é seu interesse amoroso. Rip lidera os peões Lloyd (Forrie J. Smith), Colby (Denim Richards), Ryan (Ian Bohen) e Jimmy (Jefferson White) nas tarefas diárias do rancho, consertando cercas, domando cavalos, tocando gado, etc.

Enquanto John Dutton é motivado pela vontade de deixar um legado nesse mundo e pela responsabilidade de não perder o rancho da família, seu principal adversário, o chefe indígena Thomas Rainwater (Gil Birmingham), pretende recuperar a terra que ele considera ter sido roubada de seus ancestrais. Ao longos das temporadas, os dois líderes também são obrigados a declararem tréguas e estabelecerem alianças temporárias para combater ameaças externas que chegam na região.

A Terra

Assim como em Terra Selvagem, Sheridan faz questão de chamar a atenção para os problemas relacionados às populações indígenas dos EUA. Os roteiros nem sempre fazem isso de forma sútil ou natural para a trama, mas os momentos nos quais esses desvios realmente funcionam fazem as “intrusões” valerem à pena. Além disso, essa é uma ótima forma de oferecer trabalho e representatividade para um grupo que dificilmente aparece de forma respeitosa e significativa na televisão e no cinema.

Enquanto Dutton defende seu direito sobre a terra devido ao fato de ela estar há várias gerações na família, Rainwater o lembra de que aquela é a terra de seus ancestrais, que já a ocupavam antes de existirem cercas e propriedades privadas na região. Enquanto os Dutton herdaram a terra e a riqueza, os descendentes de povos indígenas herdaram pobreza, descriminação e marginalização. O principal plano de Rainwater, que John faz o máximo possível para atrapalhar, é o de construir um cassino para levantar dinheiro o suficiente para comprar de volta a terra de seu povo.

Na terceira temporada de Yellowstone, Sheridan volta a tocar na questão da violência contra mulheres indígenas e de como esse tipo de crime é ignorado pelas autoridades. Conforme escrevi na crítica de Terra Selvagem:

Os pesquisadores contratados por Sheridan para levantar as estatísticas sobre o desaparecimento de mulheres indígenas voltaram de mãos vazias, constatando que esses dados simplesmente não existem para esse específico grupo demográfico, apesar de existirem para todos os outros. Em outras palavras, ninguém está sequer contando.

As questões indígenas também são levantadas pelas participações de Monica na trama. Casada com Kacey e professora universitária, ela vive dividida entre o conforto e proteção que os Dutton podem fornecer para seu filho e sua lealdade com a comunidade indígena. Tratados como invasores ou cidadãos de segunda classe em uma terra que pertencia a seus ancestrais, ela vê vários dos jovens de seu povo recorrendo a atividades criminosas ou ao consumo de drogas para lidarem com suas duras realidades.

Ironicamente, agora são os Dutton que precisam defender as terras de um “invasor” mais poderoso e mais implacável. O mesmo progresso em nome do qual se justificou a matança de inúmeros povos indígenas agora é utilizado por gigantes do mercado financeiro para tomar as terras da família. Se as terras ancestrais foram tomadas para se tornarem ranchos e atenderem às necessidades de famílias brancas, o rancho familiar está prestes a ser tomado para atender às necessidades de lazer dos moradores mais abastados da cidade grande.

Não é à toa que o título do primeiro episódio da terceira temporada é “Você é o Índio Agora”.

A Guerra

Um dos elementos mais exagerados de Yellowstone é como o rancho dos Dutton precisa frequentemente recorrer a práticas criminosas para defender seus interesses. Rip, Kayce e alguns dos vaqueiros são marcados a ferro quente com o “Y” da propriedade, o que significa que eles são os únicos que podem saber e se envolver nos crimes ordenados por John. Os homens marcados também não possuem a opção de pedir demissão do rancho, e a única forma pela qual eles podem partir é no “longo trem preto” (uma referência aos trens fúnebres do passado).

Os crimes geralmente são cometidos quando as disputas se tornam violentas ou quando os personagens praticam a típica justiça de fronteira, realizando punições e execuções extrajudiciais no melhor estilo faroeste. Isso é facilitado pelo fato de que John controla tanto o xerife local quanto uma força policial exclusiva dos criadores de gado, que lida especificamente com crimes de roubo, maus tratos e morte indevida de animais. Tanto Kayce quanto o vaqueiro Ryan são policiais nessa força.

Além disso, o viúvo John também colhe os frutos de um casual relacionamento amoroso com a governadora do estado de Montana, Lynelle Perry (Wendy Moniz), contando com seu apoio nas questões políticas que afetam o rancho. Para completar, na terceira temporada, um de seus filhos, Jamie, se torna o Procurador Geral do estado, aumentando ainda mais o poder da família. A palavra “corrupção” não chega nem perto de expressar apropriadamente o nível de ilicitude da influência que os Dutton exercem sobre os órgãos estatais.

Mas nem toda essa influência é capaz de frear os antagonistas da terceira temporada. O negócio multimilionário dos Dutton não está nem perto de ser o suficiente para enfrentar a bilionária firma Market Equities, que faz uma impressionante oferta de US$ 500 milhões de dólares (aproximadamente R$ 2,5 bilhões de reais) pelas terras da família. É dinheiro o suficiente para que nem os bisnetos de John precisem se preocupar com dinheiro.

Essa oferta também deixa claro o quão longe a firma está disposta a ir para conseguir a terra. Se os Dutton não aceitarem, a Market Equities vai solicitar que o estado se aproprie da terra a título de interesse público. Se a governadora não o fizer, a firma pode apoiar e ajudar a eleger um governador que o fará. Se os Dutton ainda resistirem, a empresa pode começar uma custosa guerra judicial que durará anos e esgotará os recursos da família.

John Dutton pode conhecer a justiça de fronteira da América rural, mas agora ele está lidando com a lei da selva da fronteira do capitalismo. Seus milhões de dólares e sua influência política são como flechas e machadinhas indígenas diante da invasão de um exército profissional armado com rifles e canhões. Mas sua cabeça-dura e uma promessa que ele fez para seu pai fazem com que a rendição não seja uma opção. O velho cowboy prefere correr o risco perder tudo nesse “faroeste financeiro” a abrir mão de parte do legado de sua família.

Porém, se depender dos fãs do faroeste convencional e da vida rural, o rancho Yellowstone ainda ficará muitos anos e muitas temporadas sob o controle da família Dutton. A série continua sendo um sucesso de audiência na TV à cabo dos Estados Unidos, com a terceira temporada superando significativamente os números das temporadas anteriores. A quarta já está confirmada e, por enquanto, os cowboys do Século 21 seguirão cavalgando.

* Yellowstone pode ser assistido no Brasil no Paramount Channel e nos serviços de streaming NOW (NET e Claro TV) e Prime Video (com Paramount+)