X-Men ’97: Dias de um Passado Presente
* Contém SPOILERS da série X-Men ’97
Sabe, em Genosha, eu senti muitas coisas: dor, luto, admiração por aqueles que lutaram apesar das baixas chances de vitória. Mas sabe qual foi a coisa mais estranha? Ninguém parecia estar chocado ou surpreso – nem mesmo eu. Sim, eu estava assustada, mas na realidade eu estava tendo uma profunda sensação de déjà vu; como se o passado, o presente e o futuro não importassem e jamais tivessem importado, pois nós sempre terminamos nesse mesmo lugar horrível.
Acontece que Magneto nos conhece melhor do que Charles jamais conheceu; ele sabe o que nós já sabemos; que a maioria de nós enxerga tragédias como a de Genosha como um mero déjà vu antes de seguir em frente com nossos afazeres diários. Mas o mais assustador em Genosha não foram as mortes e o caos. Foi um pensamento; o único pensamento sensato que você pode ter quando está sendo perseguido por robôs gigantes construídos para te destruir: Magneto estava certo.
Os quatro primeiros episódios da primeira temporada de X-Men ’97 nos levam de volta para a magia de um dos melhores desenhos animados infantis dos anos 1990. A série original adaptou de forma inteligente e empolgante algumas das melhores sagas dos mutantes da Marvel nas HQs. Agora, trinta anos depois e com classificação indicativa de 14 anos, essa continuação parecia estar no caminho certo para ser apenas um luxuoso veículo de nostalgia e entretenimento.
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Porém, a partir do quinto episódio, a inocência infanto-juvenil da trama é substituída por um mergulho nas profundezas da escuridão da humanidade. As histórias dos X-Men sempre serviram como metáfora para problemas sociais do mundo real, mas os acontecimentos mais brutais sempre ficavam confinados nas páginas das HQs. Dessa vez, os espectadores acompanharam um evento genocida em cores vibrantes nas telas de seus televisores e de outros dispositivos.
Segundo o criador da série, Beau DeMayo, o ataque à nação mutante de Genosha reflete momentos como os Ataques de 11 de Setembro e o tiroteio na boate LGBTQ+ Pulse, que ficou conhecido como o Massacre de Orlando.
Enquanto o 11 de Setembro de 2001 marcou a história do Século 21, o ataque terrorista na boate Pulse traumatizou a comunidade gay dos EUA, lembrando-lhe do quão longe ainda vai a intolerância presente em nossas sociedades. De forma análoga, a nação de Genosha era considerada um lugar seguro para o mutantes, onde eles não seriam perseguidos ou discriminados, mas acabou se tornando um túmulo para milhares (talvez milhões) deles.
Ação e Reação
Nas histórias dos X-Men, a rivalidade entre Charles Xavier/Professor X (Ross Marquand) e Magneto (Matthew Waterson) já é há muito tempo comparada com as discordâncias entre dois grandes líderes dos movimentos de luta pelos direitos civis nos EUA: Martin Luther King Jr. e Malcolm X. Nas duas situações, enquanto um deles defende o diálogo e a cooperação como forma de superar o medo e a discriminação, o outro defende que o lado oprimido deve utilizar a violência tanto como forma de proteção quanto como instrumento de mudança.
Outras produções do universo Marvel já abordaram conflitos morais semelhantes, como os filmes Pantera Negra e Pantera Negra: Wakanda para Sempre e a série Falcão e o Soldado Invernal. No caso de Pantera Negra, o vilão Killmonger (Michael B. Jordan) chegou a ganhar, entre parte dos fãs, seu próprio movimento “Killmonger estava certo”.
Em X-Men ’97, a violência sofrida em Genosha leva cada vez mais mutantes (e até humanos) a acreditarem que “Magneto estava certo”. Ou seja, que não há solução pacífica para a intolerância que a humanidade direciona aos mutantes. Porém, a reação mutante alimenta ainda mais os medos do restante da humanidade, aumentando o número de pessoas que apoiam a contenção e a segregação deles.
Dessa forma, o radicalismo é alimentado pelos medos que os dois lados sentem. Os dois lados se veem como vítimas. Ambos acreditam estar apenas reagindo à violência iniciada pelo lado oposto. Dessa forma, os dois lados se consideram no direito de utilizar a violência como forma de proteção. A situação pode ser ilógica, mas essas reações são muito mais instintivas do que racionais.
Essa separação em facções e o medo irracional são duas das bases de movimentos fascistas.
Foi por causa desse tipo de medo que boa parte da população da Alemanha Nazista apoiou a “extradição” de judeus, homossexuais e outros grupos do país, o que, na realidade, resultou no Holocausto. Esse medo também está nas raízes dos campos de concentração para japoneses criados nos EUA e no Brasil depois do ataque japonês a Pearl Harbor.
O preconceito e o medo também são as raízes de vários milênios de perseguição a judeus.
A fundação do estado de Israel teve como objetivo justamente criar um lugar seguro, onde os judeus não seriam mais perseguidos, expulsos e discriminados. Porém, essa medida não levou em conta os povos que já ocupavam a região da Palestina há vários séculos, resultando em um conflito que já se arrasta por décadas.
Esse é um típico caso no qual os dois lados se consideram no direito de usar toda e qualquer violência para se protegerem do lado oposto e para alcançarem objetivos políticos. Há aí um ciclo autossustentável de violência que parece não possuir solução no futuro próximo.
Livres para Escravizar
O grande vilão da primeira temporada de X-Men ’97, Bastion (Theo James), está contando justamente com os medos e os preconceitos da humanidade para executar seu grande plano. Seu objetivo final não é exterminar os mutantes, mas transformá-los em mão de obra escravizada para construir a sua “utopia”. Isso lembra tanto o nosso presente quanto o nosso passado.
Em primeiro lugar, Bastion precisa que as pessoas se tornem apáticas ao sofrimento dos mutantes e apoiem as medidas de “proteção” que ele está implementando. Isso é feito tanto por meio da escala imensurável do ataque a Genosha, que a maioria das pessoas não tem como processar, quanto por meio da manipulação da opinião pública. Na vida real, estratégias como essa são aplicadas por meio de fake news e foram parcialmente analisadas no livro A Máquina do Ódio.
É graças a isso que a mãe do jovem mutante Roberto/Mancha Solar (Gui Agustini) sente que está fazendo o melhor ao entregar ele e sua amiga Jubileu (Holly Chou) aos supra-sentinelas que os estão perseguindo. Mais preocupada com a imagem que a família está projetando, ela prefere acreditar nos androides do que no próprio filho. Essa cena também lembra os casos de pais que, por não quererem ter alguém “diferente” na família, entregam seus filhos para abusivas “terapias” de “cura gay”.
Dessa forma, Bastion está utilizando diferentes metodologias para transformar as pessoas em agentes de intolerância e perseguição. Enquanto o público em geral se torna mais conivente com a “contenção” dos mutantes, voluntários radicalizados (ou pessoas desavisadas) são injetados com nanotecnologia e transformados em supra-sentinelas.
Seu passo seguinte deverá ser prover uma racionalização da escravidão dos mutantes. Sobre isso, vale lembrar como isso foi realizado na vida real.
Na série documental Escravidão: Uma História de Injustiça um dos apresentadores fala sobre alguns do primeiros documentos a registrarem políticas racistas. Bulas papais de 1452 e 1455 autorizaram os europeus a escravizarem os não-cristãos do continente africano. Porém, nos séculos seguintes, quando já havia reinos africanos convertidos ao cristianismo, a lógica escravocrata permaneceu graças às leis e estatutos de Limpeza de Sangue que vinham sendo aprovados desde 1449 na Espanha e em Portugal.
Além disso, durante boa parte do período escravocrata, as populações urbanas da Europa (que consumiam os produtos resultantes da mão de obra escravizada) realmente acreditavam nas afirmações feitas por governos e pelo setor privado, que diziam que os escravizados eram bem tratados nas colônias e tinham vidas melhores do que na África. Isso só começaria a mudar graças à popularização da imprensa de massa, o que permitiu que chocantes relatos de maus tratos e torturas chegassem ao público em geral.
Em outras palavras, o que realmente manteve a escravização de milhões de africanos e de afrodescendentes ao longo de séculos não foram correntes e barras de ferro, mas sim as leis e os costumes que tornavam a escravização moralmente aceitável. De forma semelhante, o que encerrou esse sombrio período na História da humanidade não foram ações violentas promovidas pelos escravizados, mas sim uma mudança no pensamento da época, com o aumento na circulação de ideias abolicionistas no final do Século 18 e início do Século 19.
X-Men: Guerra e Paz
No caso da luta pelos direitos civis nos EUA, o pacifista Martin Luther King Jr. atingiu resultados muito mais eficazes e duradouros. Enquanto seria fácil para os opositores classificarem Malcolm X como um radical violento (ou seja, um “vilão”), os discursos de King eram vistos muito mais como pedidos compreensíveis de igualdade e dignidade para a população negra. Apesar do racismo não ter simplesmente desaparecido, o status quo foi alterado de forma irreversível.
É por isso que uma resposta violenta por parte dos X-Men faz parte dos planos de Bastion. A continuidade do ciclo de violência é necessária para que parte da humanidade continue concordando com a necessidade de suas medidas “protetivas”. Quando mutantes cansados da opressão vão em busca de uma retribuição furiosa, imatura e catártica, eles não apenas colaboram com os planos do inimigo, mas também correm o risco de se tornarem tão monstruosos quanto ele.
Filmes recentes como Duna: Parte 2 e Guerra Civil alertam para as consequências de se alimentar ciclos descontrolados de violência. A partir de determinado ponto, quaisquer nobres objetivos que algum dos lados possuía perdem significado diante da lógica sectária da guerra, quando o objetivo mais importante passa a ser destruir o inimigo a qualquer custo. Sendo assim, é preciso resistir à tendência humana de aplicar a violência como forma de resolução de problemas.
Por mais perturbadora que seja, a trama de X-Men ’97 presenteia os fãs com uma aventura de tirar o fôlego enquanto levanta questionamentos altamente relevantes para o futuro da humanidade. Aqui, as escolhas feitas pelos super-heróis refletem as escolhas que nós temos que fazer tanto como espécie quanto como sociedade.