True Detective: A Real Natureza da Terra Noturna


* Possui SPOILERS de True Detective: Terra Noturna e das temporadas anteriores

Em primeiro lugar, vamos deixar claro que ainda não foi dessa vez que uma nova temporada de True Detective se igualou ao nível de qualidade da primeira. Apesar disso, Terra Noturna se mantém fiel à fórmula da série enquanto vai ainda mais fundo em alguns dos aspectos estabelecidos nas temporadas anteriores. Com argumento e ambientação espetaculares, a trama chega muito perto de alcançar todo o seu potencial.

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O principal empecilho no caminho para a perfeição está nos roteiros, que sofrem com diálogos expositivos ou desprovidos de grande inspiração. Isso chega a incomodar em alguns momentos do primeiro episódio, mas essa limitação fica bem menos grave nos episódios seguintes. Talvez os roteiros tenham sido propositalmente “compactados” para diminuir os custos da produção, que foi filmada em grande parte na Islândia.

Dessa forma, é a ótima direção de Issa López, as atuações da dupla principal e a incrível ambientação que mantêm o interesse do espectador ao longo de Terra Noturna. Jodie Foster e Kali Reis fazem o que podem e conseguem elevar o material que lhes é dado, compondo personagens marcantes e intensas que se encaixam perfeitamente no mundo de True Detective.

Elas também se encaixam muito bem nos clichês das histórias de detetives. Liz Danvers (Foster) é uma detetive tão experiente quanto desiludida, com seu cinismo e comportamento tóxico afastando a maioria das pessoas de seu convívio. Já Evangeline Navarro (Reis) se encaixa no padrão de investigadora obsessiva e cabeça quente, mergulhando nas investigações sem pensar nas consequências de suas descobertas.

A estética noir e os elementos de misticismo que marcaram a primeira temporada voltam com intensidade redobrada em Terra Noturna. Dessa vez, a história é ambientada durante uma longa noite acima do Círculo Polar Ártico, local que pode passar até dois meses sem a luz do Sol durante o inverno. Além disso, López insere elementos de terror que fazem o espectador questionar se dessa vez a ameaça realmente é sobrenatural.

O Mal do Século

Mesmo sem as divagações filosóficas e niilistas de Rust Cohle (Matthew McConaughey), a primeira temporada de True Detective já era depressiva o suficiente. Quando escrevi sobre ela há dez anos, abordei a ambientação na Luisiana da seguinte forma:

A cinzenta paisagem interiorana de pobreza e depressão econômica é cortada pelo verde das matas e das regiões de bayou, provendo um ambiente úmido, belo e, ao mesmo tempo, um tanto aterrador. É como se aquelas comunidades estivessem longe da civilização, e não há nada ali para protegê-las das “forças do mal”, ou da perversidade dos próprios homens.

Esse sentimento é ainda mais acentuado em Terra Noturna. Dessa vez, ao invés do calor do sul dos EUA, é o frio que oprime a existência dos moradores da cidade fictícia de Ennis, no Alasca. Aqui, a distância da civilização é ainda mais palpável, com o clima limitando a capacidade dos meios de transporte. O tempo frio combinado com uma noite que dura vários dias oferece a ambientação perfeita para uma estilosa e pessimista trama noir.

Esse pessimismo também é sentido pelos moradores de Ennis. A trama faz questão de abordar questões de saúde mental das mais diversas formas. Nesse sentido, o destaque vai para a irmã de Narravo, Julia (Aka Niviâna), jovem que sofre de diversos distúrbios de saúde mental e que passa a maior parte da temporada combatendo a ansiedade e a depressão. Os eventos que a envolvem no quarto episódio fazem desse o episódio mais sombrio e pessimista de toda a série.

Essa temática também está em sincronia com as questões indígenas presentes nessa temporada. A depressão e o suicídio são problemas que há muito tempo marcam as populações indígenas de países como EUA, Canadá, Brasil e Austrália. Essas tendências são explicadas pela psicanálise por meio do conceito de trauma transgeracional, com os legados da colonização europeia e da assimilação forçada fazendo com que as gerações atuais se sintam deslocadas e marginalizadas nas sociedades das quais fazem (ou deveriam fazer) parte.

Em Terra Noturna, os descendentes das populações nativas de Ennis tentam manter suas raízes e lutam contra as atividades de uma mineradora na cidade. Por um lado, a liderança e os funcionários da empresa justificam que a mineração praticamente sustenta a economia do local. Por outro, os moradores sofrem com as doenças e com a alta taxa de mortalidade perinatal (morte de fetos e recém-nascidos) que estão sendo causadas pela água poluída que sai das torneiras.

Um Mal Antigo

Muitas das cenas de terror presentes em Terra Noturna parecem ter saído diretamente de um filme de fantasmas ou de possessão demoníaca. Esses elementos, combinados com o ambíguo episódio final, fazem muitos espectadores suspeitarem que, dessa vez, a grande ameaça presente em True Detective realmente seja algo sobrenatural. Porém, a cena de abertura da temporada, que mostra um rebanho de renas se jogando de um penhasco, já apresenta a primeira pista sobre o tipo de ameaça que está presente aqui.

Em 2016, a península de Yamal, na Sibéria, sofreu surtos de contaminação com a bactéria antraz. A principal suspeita é que as mudanças climáticas levaram ao descongelamento de carcaças de renas que foram mortas pela bactéria 75 anos antes, causando a contaminação de animais e seres humanos nos dias atuais. Esse tipo de problema é uma das grandes preocupações dos estudiosos do degelo do permafrost (pergelissolo), que tem potencial para liberar vírus e bactérias com as quais a humanidade jamais teve contato.

Isso lembra a trama de The Last of Us, na qual o aquecimento global faz com que um fungo capaz de transformar pequenos insetos em “zumbis” desenvolva a capacidade de infectar mamíferos, inclusive seres humanos.

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Em Terra Noturna, isso também explica a natureza misteriosa do trabalho dos pesquisadores da estação de Tsalal. Micróbios como esses poderiam ser utilizados como armas biológicas ou em outras aplicações tão questionáveis quanto lucrativas. Por exemplo, se mantidos em segredo, esses organismos poderiam ser utilizados em assassinatos, o que deixaria os investigadores praticamente incapazes de identificar o que realmente ocorreu. Se a morte causada pelo patógeno for indistinguível de uma morte natural, talvez nem haja investigação.

A trama de Terra Noturna também se inspirou em outros eventos reais. As misteriosas mortes dos pesquisadores de Tsalal foram claramente inspiradas no Incidente do Passo de Dyatlov, que só recentemente foi (parcialmente) explicado. Em ambos os casos, pessoas experientes abandonaram seus abrigos no meio da noite e se expuseram a um frio mortal. Além disso, tanto na série quanto na realidade, as vítimas apresentavam ferimentos de difícil explicação.

No caso do Passo de Dyatlov, uma das vítimas, a única mulher, foi encontrada sem a língua. Em Terra Noturna, esse detalhe também existe no caso de assassinato de Annie Kowtok (Nivi Pedersen), que jamais foi resolvido pela polícia e parece estar relacionado com as mortes em Tsalal. O caso de Kowtok, no entanto, possui mais semelhanças com o caso real do assassinato de Annie Le, uma jovem pesquisadora dos EUA que foi assassinada por um colega de laboratório chamado Raymond Clark III, que também é o nome do principal suspeito na série.

Passado e Presente

Assim como nas temporadas anteriores, os casos de assassinato investigados são apenas parte da trama principal de True Detective: Terra Noturna. Em todas as iterações, a grande questão sempre foi como esses casos afetaram as vidas dos investigadores e das pessoas ao seu redor. Indo além, as tramas também sempre trataram de como as vidas dos investigadores afetaram as investigações.

Na primeira temporada, as vidas de Rust Cohle e Marty Hart (Woody Harrelson) é que ditavam o ritmo da trama, com os dois personagens passando vários anos longe do caso principal. Na época do lançamento, o último episódio da temporada foi criticado por se limitar a “matar o vilão”, o que teria dado um “final feliz” para a história, deixado muitas perguntas sem respostas e minimizado o lado mais profundo e reflexivo da série.

A resposta do criador Nic Pizzolatto veio com uma segunda temporada ainda mais poética e pessimista. Depois de vários episódios com intricadas conspirações envolvendo políticos e o crime organizado, a trama é concluída com a vitória dos bandidos e a morte de três dos quatro protagonistas. O único fio de esperança fica no fato de que a personagem Ani Bezzerides (Rachel McAdams) fugiu para a Venezuela, de onde iria revelar os esquemas de corrupção para a imprensa dos EUA.

Em termos de protagonistas, a segunda temporada teve alguns “experimentos”. A trama reservou espaço para desenvolver um romance entre dois deles, Ani Bezzerides e Ray Velcoro (Colin Farrell). Indo além, a narrativa também inovou ao explorar a dificuldade do policial Paul Woodrugh (Taylor Kitsch) em aceitar a própria sexualidade. Por fim, a segunda foi a única temporada que teve um criminoso como um dos protagonistas, sendo ele Frank Semyon (Vince Vaughn).

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Os saltos temporais voltam na terceira temporada, que, a rigor, tem um único protagonista, o detetive Wayne Hays (Mahershala Ali). Seu parceiro Roland West (Stephen Dorff) e sua esposa Amelia Reardon (Carmen Ejogo) possuem grandes participações, mas a narrativa é traçada quase inteiramente sob o ponto de vista do drama vivido por Hays.

Nas linhas do tempo de 1980 e 1990, Hays se torna obcecado com o caso do desaparecimento de dois irmãos que saíram para passear de bicicleta. Já em 2015, enquanto luta contra o Alzheimer e conversa com uma alucinação de sua falecida esposa, um idoso Hays tenta entender quais foram os detalhes que ele deixou passar despercebidos ao longo dos anos. Esses detalhes têm a ver tanto com o caso quanto com seu conturbado casamento com Amelia. A conclusão chega a ser anticlimática sob o ponto de vista do suspense policial, mas é bem satisfatória sob o ponto de vista dramático.

Terra Noturna possui paralelos com vários desses aspectos das temporadas anteriores. Danvers possui toda a antipatia de Rust Cohle enquanto apresenta um comportamento sexual semelhante ao de Marty Hart. Já Navarro se mostra tão obcecada quanto Cohle e Hays, enquanto seu comportamento é tão violento e impetuoso quanto os de Bezzerides e Velcoro. É possível ainda encontrar referências ao passado da série em personagens como Rose Aguineau (Fiona Shaw), Peter Prior (Finn Bennett) e Hank Prior (John Hawkes).

Terra Noturna: uma explicação

Assim como o final da terceira temporada, o desfecho de True Detective: Terra Noturna é muito mais satisfatório do ponto de vista dramático do que do ponto de vista do suspense. O poético final responde algumas das perguntas centrais, mas deixa muitas outras abertas para a interpretação do espectador. Para quem estiver satisfeito com a explicação sobrenatural, basta saber que forças antigas e misteriosas estavam envolvidas nos casos investigados por Danvers e Navarro.

Para quem estiver interessado em uma resposta mais mundana, a trama deixa várias pistas sobre a real natureza das forças operando na “Terra Noturna”.

No episódio final, um instável Clark explica que os cientistas de Tsalal estavam pesquisando o DNA de um antigo microrganismo que poderia salvar o mundo. Porém, ele nunca entra no detalhe de como isso seria possível, deixando os tais microrganismos sem maiores explicações.

Diante disso, é perfeitamente possível que esse novo organismo, até recentemente desconhecido pela humanidade, tenha efeitos colaterais ainda não mapeados. Outra possibilidade é que outras formas de vida foram liberadas na atmosfera junto com o organismo investigado, afetando pessoas e animais de formas nunca antes vistas. Diante disso, os efeitos alucinógenos e depressivos causados por esses vírus ou bactérias seriam indistinguíveis de “magia” ou de fenômenos sobrenaturais.

Seguindo nessa linha, podemos entender que a mesma contaminação que levou as renas a se jogarem de um precipício no início da temporada afetou vários outros personagens ao longo da trama. É por causa desse patógeno que os cientistas não voltam para coletar suas roupas depois de serem liberados no gelo. Talvez seja por causa desses organismos que a depressão de Julia se agrava. Talvez esses organismos sejam a origem das vozes que, em mais de um momento no episódio final, chamam Navarro e Danvers para a morte certa na escuridão gelada.

Os sangramentos nos ouvidos, apresentados tanto pelos cientistas mortos quanto por Navarro (que parece ter uma maior sensibilidade ao patógeno), podem ser sinais de lesões nos tímpanos causadas pelas infecções. Isso também explica como Otis Heiss (Klaus Tange) havia sido “atacado por Annie K” anos antes de ela ter nascido. Quando confrontado com isso, Raymond Clark (Owen McDonnell) afirma que “Annie K” é algo muito mais antigo do que as detetives imaginam:

Eu queria saber como sobreviver a ela. (…) Ela está escondida nessa caverna desde sempre. Desde antes de ela nascer, e depois de todos nós morrermos, o tempo é um círculo plano, e nós estamos todos presos nele.

Sendo assim, o que Clark interpreta como sendo o espírito de Annie K clamando por vingança, na verdade se trata dos efeitos de um patógeno que ele ainda não entende por completo. Por serem inéditas, as manifestações sensoriais e comportamentais (como o aumento da tendência ao suicídio) desse novo tipo de infecção ainda não possuem explicações lógicas nem para ele e nem para os outros cientistas.

Para esses outros, o fantasma de Annie K aparace na forma de uma vingança violenta e aterradora, lembrando em vários aspectos os desfechos de filmes como Terra Selvagem e O Segredo dos Seus Olhos. Longe da civilização e enfrentando pessoas poderosas e influentes, Annie K não pode contar com a justiça; tudo o que ela tem é a retribuição entregue por mulheres como ela, acostumadas a batalhar pela sobrevivência e a jamais abandonar umas às outras.

True Detective: Terra Noturna serve tanto como homenagem quanto como reimaginação das temporadas anteriores, abrindo portas para novas abordagens e novas interpretações da franquia. Essas experimentações são bem mais interessantes do que quaisquer tentativas de se reproduzir fielmente o passado, sendo muito mais empolgante traçar novas rotas para o futuro.