Trilogia de Baztán: o Guardião, os Ossos e as Oferendas
A história de detetive contada na Trilogia de Baztán (que tem origem no mundo literário) possui quase todos os clichês desse gênero: uma detetive com problemas na família e assombrada pelo passado, um criminoso genial que parece estar sempre um passo à frente da lei, testemunhas morrendo de forma misteriosa, um assassino que é alguém mais próximo do que se pensa, etc. Porém, apesar da previsibilidade e do exagero de certos elementos, as três produções espanholas lançadas no Brasil pela Netflix oferecem válidas e interessantes distrações para os fãs do estilo.
O arco narrativo apresentado ao longo dos filmes está longe de ser tão subversivo quanto, por exemplo, o de Entre Facas e Segredos (crítica aqui), que realmente tenta apresentar algo novo ao espectador. Em Baztán, a narrativa está mais próxima da comodidade das histórias do detetive australiano Jack Irish (Guy Pierce), sobre as quais escrevi aqui e aqui, apesar de tentar ser tão sombria e profunda quanto filmes como Millenium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres e Seven: Os Sete Crimes Capitais.
A trilogia também possui aspectos de fantasia, não apenas fazendo uso de elementos do folclore basco, mas também materializando a figura do basajaun, o guardião da floresta, na trama. Porém, esse é um aspecto pouco explorado, e que praticamente desaparece no terceiro filme, apesar de ainda haver várias referências à mitologia. No fim das contas, a história fica mais próxima de “aventuras” como O Colecionador de Ossos e Beijos Que Matam, além de ser mais um exemplar da atual onda de thrillers espanhóis, que inclui filmes como Durante a Tormenta e O Silêncio da Cidade Branca.
O maior ponto negativo da Trilogia de Baztán é a duração de cada um dos filmes, que fica sempre acima dos 120 minutos. Isso pesa especialmente no primeiro capítulo, O Guardião Invisível, no qual uma trama densa e um ritmo arrastado causam a impressão de estarmos vendo um filme de três horas ou mais (ou maratonando uma série). Mas é também graças a isso que a produção consegue estabelecer o mundo que será explorado nos capítulos seguintes e incluir dois temas que se destacam.
O primeiro é a questão da maternidade, já que a protagonista Amaia Salazar (Marta Etura) precisa lidar com os traumas causados por uma infância abusiva para finalmente realizar o sonho de ser mãe. A simples visão de mulheres grávidas ou de mães levando seus bebês parece afetá-la e trás à tona seu medo de jamais conseguir algo semelhante. O fato de que a violência que ela sofreu foi perpetuada pela própria mãe, Rosario (Susi Sánchez), deve aumentar sua insegurança, provavelmente levando-a a questionar sua própria capacidade de ser mãe.
O Guardião Invisível também mostra, por meio de Flora (Elvira Mínguez), como um moralismo misógino pode ser utilizado para justificar a violência contra as mulheres. Enquanto sua irmã Amaia, detetive da Polícia Foral de Navarra, está investigando os assassinatos em série de jovens garotas nos arredores da Baztán, Flora está mais preocupada em revirar mágoas do passado e em usar a conduta “imoral” das vítimas para justificar os crimes, usando o argumento de que eles não teriam ocorrido se as vítimas fossem “bem comportadas”.
Flora parece ter herdado esses posicionamentos de Rosario, que se torna o ponto focal do segundo filme, Legado nos Ossos. Nele, fica claro que há uma conspiração de natureza ocultista (com referências a tartalo) conectando os assassinatos do primeiro filme, o passado de Amaia e as ações de Rosario. Amaia segue sendo obrigada a confrontar seus traumas, o que dessa vez envolve revelações chocantes sobre os seus primeiros dias de vida. Vale destacar as incríveis cenas de inundação e enxurradas em Baztán, que fazem a diferença para aumentar a tensão e o suspense durante a ação.
No capítulo final, Oferenda à Tempestade, o assassinato de um bebê (que seria oferecido a inguma) parece aproximar Amaia da resolução do caso, que envolve sacrifícios humanos realizados por uma misteriosa seita da qual sua mãe fazia parte. Porém, os instintos investigativos da protagonista seguem sendo prejudicados devido a sua proximidade emocional com o caso, o que apenas piora depois da morte de uma pessoa próxima e de uma série de acontecimentos que a levam a tomar decisões cada vez mais questionáveis. Na prática, é apenas graças às ações desesperadas de Yolanda (Marta Larralde), mãe de gêmeos que foram assassinados, que Amaia consegue resolver o caso e identificar o responsável pela seita.
Teorias da conspiração à parte, a representação que o filme faz desse tipo de organização é bem verossímil, tanto na existência de um líder controlador e manipulador quanto na forma como Elena (Alicia Sánchez) e Rosario são atraídas. As inofensivas práticas de meditação e yoga que as levam a participar do grupo logo dão lugar ao misticismo e ao fanatismo inspirado pelo líder, da mesma forma que é mostrado em documentários como Holy Hell e Wild Wild Country (sobre os quais já comentei aqui).
Oferenda à Tempestade deixa algumas pontas soltas que podem indicar uma possível continuação. Além do inexplicado desaparecimento do investigador Aloisius Dupree (Colin McFarlane), é bem possível que o líder original da seita, pai daquele que é pego por Amaia, ainda esteja vivo e na ativa, já que seu túmulo está vazio e um dos fanáticos recebe a ordem de cometer suicídio já no epílogo da ação.
A Trilogia de Baztán não apresenta nada incrível em termos de inteligência ou originalidade, mas pelo menos fornece algumas boas horas de passatempo para os fãs de mistérios de assassinatos. Se realmente tiver continuações, a maior melhoria que pode ser implementada é a diminuição do tempo de duração de cada filme (o ideal seria por volta de 90 ou 100 minutos), além de talvez ambientar a trama em um período menos chuvoso do País Basco.