The Crown: Damas de Ferro e Guerras Pessoais
Na quarta temporada de The Crown, a Rainha Elizabeth II (Olivia Colman) ganha duas concorrentes de peso. A Lady Diana Spencer (Emma Corrin) e a primeira-ministra Margaret Thatcher (Gillian Anderson) chegam não apenas com seus próprios dramas e conflitos pessoais, mas também com atitudes que colocam em xeque a imagem e o poder simbólico da família real britânica. Os embates são intensos e, como na vida real, terminam sem vencedores.
A nova temporada também vai mais fundo na situação social do Reino Unido e no conflito na Irlanda do Norte, que foi praticamente ignorado na terceira temporada. Graças a Thatcher, a Guerra das Malvinas e seu papel no aspecto nacionalista do (sempre controverso) thatcherismo também são abordados e contextualizados tanto do ponto de vista da família real quanto do público em geral, representado (de forma ficcional) pelo caso de Michael Fagan (Tom Brooke).
Mas esses fatores históricos servem apenas como pano de fundo para os dramas pessoais que Peter Morgan, criador e escritor de The Crown, está interessado em contar.
No caso de Thatcher, o autor mergulha em sua personalidade e em sua visão de mundo, revelando como suas crenças e experiências pessoais moldam suas políticas econômicas, sua estratégia de poder e sua vida familiar. É uma visão limitada e ainda muito popular: como, sob seu ponto de vista, tanto ela quanto seu pai haviam subido na vida graças apenas aos próprios esforços, ela acredita que essa é a régua sob a qual toda a população do país deve ser medida. É a ideia de que o valor de uma pessoa é medido não por suas ideias ou sentimentos, mas sim por sua contribuição para a economia. Os “fortes” conseguem se virar, enquanto os “fracos” ficam para trás.
Isso justificou o desmonte do estado de bem-estar social que reinava no país desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que provavelmente havia beneficiado tanto ela quanto seu pai. Ao invés de colaboração, ela defendia a individualidade como exemplo de valor moral. Seriam guiados acima de tudo pelos interesse individuais que os cidadãos iriam contribuir para o crescimento do país. O senso de comunidade deveria ser manifestado apenas em questões patrióticas, como eventos esportivos internacionais e conflitos armados, como o das Malvinas.
Essa abordagem ia de encontro ao ponto de vista da Rainha, cuja principal função é manter a união entre os cidadãos e os países da Comunidade das Nações. O individualismo que rasgava o tecido social e criava uma sensação de “cada um por si” desconstruía tudo o que os Windsor haviam construído desde a Segunda Guerra. Como se isso não fosse suficiente, Thatcher também almejava ser um símbolo nacional e fonte de inspiração para o povo, justamente a posição ocupada pela Rainha.
Essa abordagem individualista e insensível às necessidades alheias alienava não apenas a população mais pobre e a Rainha, mas também seus aliados mais próximos. Suas certezas inabaláveis e atitudes intransigentes a levavam a fazer muito menos concessões e muito mais adversários. Sua ingloriosa queda foi apenas uma consequência natural do seu estilo de liderança.
Talvez Thatcher esperasse ser respeitada e adorada devido às consequências positivas de suas políticas (ignorando, é claro, as negativas), mas no final ela foi traída muito mais pelas próprias ideias do que por seus aliados. Eles, por sua vez, apenas praticaram o que ela defendia: colocaram seus interesses pessoais acima dos interesses gerais e atacaram a líder que havia feito História no Partido Conservador. Além disso, isolada e impopular, ela havia entrado para o grupo dos “fracos” que devem ser deixados para trás.
Ainda assim, assistir à ascensão e queda de Thatcher é mais fácil do que assistir em câmera lenta à incrível catástrofe do casamento entre Lady Di e o Príncipe Charles (Josh O’Connor). A situação é mais angustiante do que seria em um drama normal, pois, uma vez que o espectador de The Crown já conhece o desfecho daquela história, cada momento de esperança ou felicidade vem acompanhado da certeza de que aquilo tudo terminará em lágrimas e decepções. Uma jovem ingênua e um homem marcado pelas exigências da família se colocam em uma situação que logo se tornaria insuportável para todos os envolvidos.
O fato é que ambos vinham de famílias disfuncionais que os deixaram com sérias carências emocionais. Enquanto a criação de Charles foi mostrada nas temporadas anteriores, a quarta temporada deixa de mostrar alguns importantes detalhes da infância de Diana. O conflituoso divórcio entre seus pais teve um impacto devastador sobre ela, que ficou sob a custódia do pai e jamais aceitou sua madrasta. É por isso que em várias cenas de The Crown o espectador a vê tentando encontrar na Rainha uma figura materna. O que ela não sabia era que, depois de assumir a Coroa, a monarca mal foi uma figura materna para os próprios filhos.
Diana via no casamento com Charles uma oportunidade de acertar onde seus pais erraram, acreditando que o “conto de fadas” resultaria na estabilidade familiar que ela nunca teve. Porém, o que ela encontrou na família real foi uma organização quase militar, formada por aristocratas rurais endurecidos pelo dever e desprovidos de grande sofisticação ou abertura emocional. Para piorar, seu Príncipe continuava perdidamente apaixonado por Camilla Parker Bowles (Emerald Fennell) e não conseguia se ver feliz longe da ex.
Tanto Charles quanto Diana precisavam ser notados e amados, mas isso vinha muito mais fácil para ela do que para ele. O brilho de Diana diante da opinião pública ofuscava não apenas o futuro rei, mas também a atual rainha e o restante da família real. Em pouquíssimo tempo, ela superou todos os familiares no principal “negócio” da família: servir como símbolo e fonte de inspiração. A princesa não conseguia estabilizar seu casamento, mas sua influência conseguia rivalizar com a influência da monarquia.
Enquanto isso, o ressentimento de Charles apenas aumenta. A insistência de Diana em tentar salvar o casamento, mesmo quando já estava claro que não era isso que Charles queria, o leva a tomar atitudes baixas e mesquinhas, ao invés de se responsabilizar pelo fracasso matrimonial. Sob o comando da família real, eles se tornam os “vilões” um do outro e o casamento se torna uma zona de guerra. Porém, no fim das contas, não há grandes vilões aqui; são apenas apenas pessoas carentes e traumatizadas machucando umas às outras sem perceber ou sem se importar, sempre dando um jeito de justificar os próprios atos para si mesmas.
A beleza da narrativa de The Crown está na possibilidade de ver, ao longo das temporadas, a relação entre a juventude e a maturidade desses personagens. Isso vale inclusive para a Rainha, cujo endurecimento ocorre de forma natural ao longo dos quarenta episódios. Nessa quarta temporada, fica claro como ela desenvolveu alguma sensibilidade em relação às necessidades da sua “família de nações”, mas segue sem conhecer as necessidades dos membros mais próximos da própria família, inclusive dos filhos.
Essa longa narrativa nos permite ver não apenas os efeitos da passagem do tempo sobre os personagens, mas também como eles mesmos percebem a passagem do tempo. Ainda que mais assertiva, a Rainha dos anos 1980 segue basicamente com a mesma mentalidade da Rainha dos anos 1950, da mesma forma que A Rainha-Mãe (Marion Bailey) segue com a mesma mentalidade dos anos 1930. Por outro lado, personagens como a Princesa Margaret (Helena Bonham Carter) e a Princesa Anne (Erin Doherty) conseguem não apenas acompanhar a evolução da sociedade, mas também navegar as diferenças entre o mundo real e o mundo da família real, algo que parece impossível para o Príncipe Charles.
The Crown também nos faz pensar em todas as pessoas que a Rainha Elizabeth II já teve que velar desde a morte de seu pai. A cena da Rainha jogando um punhado de terra sobre um caixão já se tornou muito familiar desde o início da série, e em algum momento se repetirá tanto para sua mãe quanto para sua irmã. A Rainha também comparecerá ao funeral de Thatcher, em 2013. Antes disso, apenas um ex-premier contou com a presença da Rainha em seu funeral: Winston Churchill.
Há também outros tipos de perda, como a desonra do envolvimento do Príncipe Andrew (Tom Byrne) com o traficante sexual Jeffrey Epstein. No quarto episódio dessa quarta temporada, fica claro que a personalidade de Andrew não está indo na melhor das direções, deixando a Rainha preocupada.
No mais, a Rainha segue Rainha, o Príncipe Philip (Tobias Menzies) segue ao seu lado, Charles segue com Camilla, e as câmeras seguiram a Princesa Diana até o final. Ao que tudo indica, as histórias que The Crown vai contar em suas duas últimas temporadas serão as mais trágicas de todas.