Star Trek: Discovery e os Sonhos de Humanidade
Quando Gene Roddenberry lançou a primeira série da franquia Star Trek em 1966, o programa representava não apenas uma metáfora para a Guerra Fria, mas também uma história de esperança para a humanidade. Nela, os habitantes do planeta Terra haviam atingido um estado de paz e equilíbrio global, formando uma sociedade sustentável e desprovida de grandes conflitos internos. Isso também significava que as pessoas haviam atingido um nível de maturidade, inteligência emocional e saúde mental que viabilizava toda essa harmonia entre elas e entre as nações.
Esse é dos motivos pelos quais Star Trek: Discovery vem desde a primeira temporada sendo alvo de muitas críticas dos fãs de longa data da franquia. Apesar de ter recebido uma educação vulcana, a protagonista Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) é impulsiva e, em várias ocasiões, recorre rapidamente a métodos violentos para a resolução de problemas. Ainda nos dois primeiros episódios da primeira temporada, ela desobedece sua capitã e ordena um ataque preemptivo contra uma nave klingon, começando uma guerra e causando sua condenação a prisão perpétua pela Federação dos Planetas Unidos.
Além disso, os roteiros estão quase sempre à serviço da ação, muitas vezes apresentando inconsistências e conveniências que irritam os fãs das séries anteriores. Para piorar, uma vez que a história de Discovery se passa antes da série original, os roteiristas precisam fazer uma boa “ginástica” para justificar como nenhum dos “novos” personagens e tecnologias jamais foram sequer mencionados naquela série, causando ainda mais inconsistências e irritação.
Porém, seria um erro achar que a franquia precisa necessariamente ser fiel a visão do seu criador. Tanto a série original quanto as séries seguintes foram muito mais um reflexo das décadas nas quais foram lançadas do que um simples exercício de expansão de um universo estático. Para o bem ou para o mal, Star Trek: Discovery apresenta uma visão de humanidade que reflete os pontos de vista progressistas da atualidade enquanto provê um tipo de entretenimento que faz sentido no atual mercado televisivo. O mesmo pode ser dito sobre todas as séries anteriores.
Mesmo na série original, os seres humanos não eram perfeitos. Em muitos sentidos, a comandante Burnham canaliza uma nova versão da rebeldia e da ousadia do capitão James T. Kirk (William Shatner). Até o lógico e racional Spock (Leonard Nimoy) já foi insubordinado a ponto de ser julgado em uma corte marcial. A humanidade de Star Trek não é ideal por não cometer erros, mas sim porque aprendeu a lidar com eles de forma madura e racional, aprendendo com o passado e em constante evolução em direção ao futuro.
Futuro Distante
Em sua terceira temporada, Star Trek: Discovery se livra das amarras da série original ao pular novecentos anos para o futuro. A viagem no tempo foi necessária no final da segunda temporada e colocou os tripulantes da USS Discovery em uma situação inédita na franquia, desconectada dos principais eventos de todas as séries anteriores. Porém, novos desafios surgem, já que a Federação parece ter sido extinta nesse futuro remoto.
Essa nova ambientação parece mais uma vez distanciar a série da premissa original e colocá-la em um ambiente de “faroeste”, semelhante à série The Mandalorian (resenha aqui) da franquia Star Wars. Porém, enquanto a galáxia segue sem lei, os ideais de humanidade continuam sendo demonstrados pela tripulação da Discovery e pelo pouco que restou da Federação.
Se a visão de Roddenberry era focada no aspecto geopolítico, a visão de Star Trek: Discovery é muito mais focada na intimidade de seus personagens. Em outras palavras, é uma visão que não se manifesta necessariamente pelas organizações políticas, mas sim pelas relações entre as pessoas e as relações entre elas e o passado. O sonho de humanidade aqui não é um sonho de civilização, mas sim de aceitação e evolução pessoais.
Isso é mostrado por meio de um “festival” de relacionamentos saudáveis e apoio emocional. As desavenças e ressentimentos dentre a tripulação sempre são superadas por meio de maturidade e sinceridade. A série inspira o espectador a imaginar uma humanidade capaz de reconhecer o próprio ego e a não se deixar controlar por ele. Algumas interações “tóxicas” até acontecem, mas elas sempre são superadas com a ajuda de empatia e reflexão.
A série também faz questão de ter uma boa representatividade racial e sexual, e faz isso de formas que se encaixam perfeitamente naquele universo. Por exemplo, os desafios encontrados pelo casal formado pelo engenheiro Stamets (Anthony Rapp) e o médico Culber (Wilson Cruz) não estão relacionados com homofobia (que já deve ter sido completamente superada no Século 23), mas sim com o fato de que eles trabalham juntos em um contexto que regularmente coloca a vida deles em risco. A terceira temporada também inclui um casal não-binário, mas ainda há espaço para melhorias na representatividade dele, já que o não-binarismo acaba sendo misturado com aspectos de ficção-científica.
(A série original havia feito algo muito mais radical: além de incluir uma personagem negra no elenco fixo de uma série de ficção-científica, ela protagonizou o primeiro beijo inter-racial da televisão nos EUA. Na época, foi revolucionário.)
No mais, Star Trek: Discovery segue com seu ritmo alucinante e grandes reviravoltas. Na terceira temporada, Burnham vai cada vez mais abraçando o arquétipo de heroína de ação, a ponto de entrar 100% no modo Duro de Matar nos episódios finais. A impulsividade e a imprevisibilidade da personagem seguem sendo uma grande atração, e até seus colegas e superiores começam a aceitar esse lado dela, apesar de nem sempre trazer bons resultados. Dentre as várias inconsistências presentes na série, essa é a mais divertida de se assistir.