Realidade Violada: A Ascensão dos Golpes na Internet


Em maio de 2020, o site de notícias de tecnologia Tecmundo lançava o premiado documentário Realidade Violada: Débito ou Crédito, no qual os cineastas mostravam as várias facetas dos crescentes golpes de cartão de crédito no Brasil. Agora, em maio de 2023, a segunda parte da série de reportagens foi lançada. Realidade Violada 2: Central do Crime vai ainda mais fundo na realidade desse e de outros tipos de golpe que vêm se tornando cada vez mais comuns graças a inovações tecnológicas e ao amplo acesso à Internet.

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Nas duas reportagens, que estão gratuitamente disponíveis no YouTube, vítimas, policiais, advogados e até mesmo criminosos apresentam seus pontos de vista sobre essa crescente modalidade criminal. Assim como o documentário A Arma Perfeita evidencia como o ambiente virtual tem se tornado um novo campo de batalha do ponto de vista militar, as duas partes de Realidade Violada evidenciam como o crime está migrando das ruas para as redes.

As produções mostram inclusive imagens da vida de ostentação e dos itens de luxo adquiridos pelos golpistas, que se dividem em várias categorias. Há desde jovens humildes, imaturos e inescrupulosos em busca de dinheiro fácil até grandes organizações criminosas com diversos níveis de hierarquia e um certo grau de “profissionalização” do crime. O que todos eles parecem ter em comum é a visão de que jamais serão pegos.

Do ponto de vista dos vários policiais civis entrevistados, isso não é verdade. Eles deixam claro que, na maioria das vezes, é perfeitamente possível rastrear e identificar os bandidos. O grande problema é a falta de investimento nesse tipo investigação, que sofre com as faltas de mão de obra e de unidades especializadas para lidarem com o crescente volume de crimes na Internet. Em São Paulo, já há inclusive delegacias nas quais a grande maioria dos estelionatos reportados ocorreram no ambiente virtual.

Já as instituições financeiras preferiram não apresentar seus pontos de vista, o que apenas reforça a visão de que os bancos e instituições de pagamento não dão a devida atenção ao tema. Tudo indica que essas empresas já “precificaram” o atual volume de fraudes. Em outras palavras, talvez saia mais barato para elas lidar com os casos nos quais os clientes reclamam do que desenvolver sistemas e processos mais robustos.

Sistemas mais seguros provavelmente evitariam os vazamentos de bancos de dados e os comprometimentos de conexões com as informações pessoais de milhões de brasileiros, o que dificultaria as técnicas de engenharia social utilizadas pelos golpistas para convencer as pessoas a informarem dados sensíveis, como números de cartão e senhas. Em outros casos, os dados sensíveis estão armazenados de forma imprópria, o que facilita ainda mais a atuação dos criminosos caso haja um vazamento.

A Ascensão da Mediocridade

Golpes financeiros existem desde a Idade Antiga, mas nos últimos anos a tecnologia tem facilitado ainda mais a atuação dos golpistas. Sem ter que lidar com as vítimas pessoalmente, os criminosos conseguem criar diversas explicações (ou racionalizações) para justificar as próprias ações e não se considerarem pessoas tão ruins assim. Porém, o que alguns dos policiais e advogados entrevistados em Realidade Violada deixam claro é que esses crimes podem ser muito mais prejudiciais do que os roubos cometidos presencialmente.

Os estelionatos cometidos no ambiente virtual não são considerados crimes violentos, mas ainda há uma certa brutalidade envolvida neles. Vários dos casos mostrados nas reportagens são os de pessoas que viram todas as suas economias de vida simplesmente desaparecerem de uma hora para outra, sendo substituídas por dívidas de empréstimos feitos em seus nomes. Mesmo nos casos que não foram tão extremos, o sofrimento psicológico causado ainda é capaz de traumatizar uma pessoa pelo resto de sua vida.

Há os golpistas que tratam a situação como um jogo, acreditando que se a vítima caiu em seu esquema era porque ela merecia cair. Outros preferem acreditar que estão prejudicando apenas os lucros dos bancos, ignorando o sofrimento causado e o fato de que muitas vítimas não conseguem reaver 100% do dinheiro perdido no golpe. Assim como o sistema financeiro trata as pessoas como meros números em uma planilha, os estelionatários são frios o suficiente para ignorar ou relativizar a humanidade de suas vítimas.

Essa realidade lembra séries como Round 6 e Os Favoritos de Midas, que servem como alegorias para o lado mais tóxico do sistema capitalista. Dessa forma, enquanto muitos golpistas acreditam que são rebeldes lutando contra o sistema, o que eles realmente estão fazendo é abraçando a lógica capitalista até suas últimas consequências.

Há também aqueles que são psicopatas e não precisam de tantas racionalizações assim, pois não são capazes de ter empatia. Esse tipo é evidenciado em filmes como O Abutre e Eu Me Importo, que são protagonizados por golpistas impiedosos. Já filmes como Parasita e As Golpistas mostram pessoas de origem humilde agindo de forma oportunista e saindo do controle da situação, especialmente quando perdem completamente a perspectiva de certo e errado e vão longe demais em seus golpes.

O que esses vários tipos de golpistas têm em comum é uma certa mediocridade, já que são pessoas que escolhem explorar as fragilidades humanas para tomar as conquistas dos outros, desestabilizar vidas alheias e causar mais sofrimento no mundo. As vítimas dos golpes virtuais não são pessoas “burras”, mas sim pessoas que geralmente estão emocionalmente ou cognitivamente vulneráveis, sendo afetadas por problemas como a depressão ou a solidão, ou mesmo sufocadas pela correria do dia a dia.

Contos da Carochinha

As técnicas de engenharia social reportadas nas duas partes de Realidade Violada possuem todas as características apontadas por especialistas no assunto. Em um dos episódios do podcast australiano de psicologia All In The Mind, a doutora e especialista em neuropsicologia forense Stacey Wood fala sobre o tema e deixa claro que ninguém, nem mesmo ela, está imune a ser enganado por um golpista.

Em primeiro lugar, os golpistas se beneficiam do fato de que algumas pessoas acreditam que jamais cairiam em um golpe. O que essas pessoas não entendem é que os criminosos dificilmente vão aparecer com uma história implausível. Em boa parte dos casos apresentados em Realidade Violada, os estelionatários abordaram os cidadãos se passando por instituições financeiras e dizendo justamente que haviam detectado uma tentativa de golpe, levando a vítima a compartilhar as informações sensíveis que os criminosos queriam.

Essa técnica se encaixa perfeitamente nas três fases de um golpe descritas pela doutora Wood no podcast.

A primeira fase é atrair a completa atenção da vítima, o que é feito quando o “banco” diz que uma tentativa de golpe foi detectada. A segunda fase é estabelecer um relacionamento de confiança, o que os golpistas fazem ao deixarem claro que já possuem muitos dos dados reais da vítima. Nome completo, CPF, telefone, data de nascimento e outros dados pessoais são facilmente encontrados em bancos de dados clandestinos disponíveis para compra na deep web, e são eles que os golpistas utilizam nessa segunda fase.

A terceira fase se trata de manter o relacionamento de confiança, que é quando o golpista oferece ajuda para evitar a tentativa de golpe. É nesse momento que as pessoas se tornam extremamente “obedientes” e passam a seguir cegamente as orientações do golpista, acreditando que estão agindo em benefício próprio para se defenderem de um golpe. Wood descreve isso como uma espécie de “hipnose”, já que a vítima se torna completamente susceptível à realidade inventada pelo criminoso.

Técnicas como essa são eficazes porque criam um senso de urgência e colocam as pessoas em um estado emocional alterado. Isso prejudica a nossa capacidade de raciocínio lógico e pensamento crítico, diminuindo as chances de questionarmos a veracidade da situação apresentada. É por isso que geralmente os criminosos insistem para a vítima agir o mais rápido possível e não desligar o telefone, pois isso lhes daria a oportunidade de refletir por um instante e desconfiar da história.

Muitas vezes, as vítimas só conseguem sair da “hipnose” e enxergar as inconsistências quando começam a relatar a situação para outras pessoas próximas, que provavelmente não estarão emocionalmente comprometidas. Isso evidencia o motivo pelo qual pessoas solitárias ou que já estão emocionalmente abaladas são ainda mais vulneráveis aos golpes virtuais. As vítimas apresentadas em Realidade Violada não foram “descuidadas”; elas apenas não tinham nenhum motivo lógico para duvidar da ajuda que lhes foi oferecida.

Diante de tudo isso, Realidade Violada serve não apenas como um informativo material jornalístico, mas também como uma ferramenta educacional para aumentar a resiliência das pessoas contra os golpistas. É claro que essa é uma proteção meramente temporária, pois os criminosos estão sempre desenvolvendo novas formas de subtrair os bens alheios e piorar as vidas das pessoas. Resta ao poder público e às instituições financeiras se esforçarem para proteger cidadãos e clientes desses ataques.

Realidade Violada: Débito ou Crédito?

Realidade Violada 2: Central do Crime