Nheengatu e Tentehar: Retratos do Brasil


Parte da programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, os documentários Nheengatu e Tentehar: Arquitetura do Sensível traçam retratos diversos e complementares de um país que parece estar no auge de sua complexidade. Juntos com a ficção Curral (também parte da Mostra e sobre o qual escrevi aqui), os filmes revelam não apenas visões e realidades diferentes de um mesmo país, mas também as cicatrizes deixadas por processos históricos iniciados em 1500 e que se recusam a cessar. O mais óbvio deles é a violência contra povos indígenas.

Em Nheengatu, o diretor português José Barahona desembarca no estado do Amazonas e sobe o Rio Negro em busca da língua nheengatu, remanescente de um dos ramos da língua geral que se falava no Brasil até o início do Século 20. Ao longo da viagem, que chega a ultrapassar as fronteiras com a Colômbia e com a Venezuela, ele e a equipe encontram comunidades indígenas que parecem incorporar elementos de todas as eras brasileiras. É possível enxergar nelas tanto os resquícios de culturas antigas quanto a influência (e desconfiança) deixada por mais de quinhentos anos de contato com o homem branco.

São pessoas cujas culturas e pontos de vista podem ser considerados marcos do longo processo de formação do Brasil. Em algumas delas, há o conflito entre manter a identidade de suas culturas ancestrais e a aceitação das soluções e confortos da vida moderna. Em outras, há apenas uma internalizada aceitação de que o novo deve ser completamente abraçado e o velho superado, a ponto de chamar os índios ainda portadores da cultura original de “parentes rebaixados”.

Além disso, a História se repete e eles vão mais uma vez sendo invadidos e colonizados por uma cultura externa, que dessa vez se manifesta por meio do lucrativo evangelismo pentecostal. Tal qual aconteceu com os romanos e inúmeros outros povos, a genial superioridade do deus hebraico (que tem todos os poderes e toda a benevolência possíveis) novamente faz a diferença, levando à renegação e ao esquecimento dos deuses originais daquelas populações.

A placidez de Nheengatu é substituída por uma explosão de contradições em Tentehar: Arquitetura do Sensível, no qual os diretores Paloma Rocha e Luís Abramo se esforçam para fazer caber em apenas uma hora e meia a maior quantidade possível de “Brasis” que eles podem encontrar. Partindo da luta dos guajajaras no Maranhão, os documentaristas também escutam outras tipos de “tribos” em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Brasília. Os pontos de vistas de petistas, bolsonaristas e especialistas se misturam no redemoinho ideológico que foi a eleição de 2018.

Aquele ano foi (até agora) o ápice da fervura do caldeirão político brasileiro, fruto da combinação entre pressões sociais existentes há séculos e o surgimento de novas tecnologias de comunicação. Graças a isso, algumas bolhas foram rompidas e outras foram criadas. O que fica claro é que forças sociais que antes não eram ouvidas (nem à esquerda e nem à direita) se tornaram impossíveis de serem ignoradas, especialmente devido à realidade apresentada no livro A Máquina do Ódio, sobre o qual escrevi aqui.

O mais interessante é ver como pessoas das mais diversas classes sociais apostaram todas as fichas em Jair Bolsonaro, um candidato com um histórico no mínimo problemático. A adoração cega reservada a ele era comparável apenas à adoração cega recebida por Lula, que pelo menos já havia feito alguma coisa pelos adoradores. Independente disso, a fé depositada sobre eles revela muito mais sobre o povo do que sobre os políticos em si. O retrato de nação mostrado em Tentehar pode ser reforçado pela reportagem abaixo, que mostra uma das facetas dos conflitos por terra em Rondônia.

Os documentaristas de Tentehar também visitaram uma tribo afetada pelo rompimento de barragem em Brumadinho, que espalhou rejeitos de mineração por uma grande área, ceifando vidas e contaminando rios de forma catastrófica. É esse e outros tipos de ameaças ambientais que os povos indígenas tentam manter longe de suas terras e de sua gente, em uma luta que já dura séculos e que pode (e deveria) ser considerada extremamente patriótica.

Nheengatu e Tentehar nos lembram que existem outros “Brasis” que precisam ser levados em conta nas nossas visões de país, sejam eles formados por tribos indígenas, moradores de rua ou trabalhadores rurais de todas as regiões do território nacional. Enquanto os detentores do poder político e financeiro continuarem tentando construir uma nação com base apenas nos grupos com os quais eles possuem afinidade pessoal, as surpresas desagradáveis vão continuar acontecendo.