Lista de Filmes: da civilização
O Espião Que Veio do Frio (1965)
A obra na qual O Espião Que Veio Do Frio é baseada foi um best-seller absoluto e lançou o escritor John Le Carré (pseudônimo de David John Moore Cornwell) à fama internacional. O motivo de tamanho sucesso foi que essa estória quebrou a narrativa oficial sobre a Guerra Fria ser uma luta do bem contra o mal, ou do certo contra o errado. Nela, além de tirar todo o glamour ao redor da ideia dos agentes secretos (que havia sido construído principalmente pelo James Bond de Ian Fleming), é exposto que as forças de inteligência ocidentais usam métodos tão ou mais sujos e cruéis que os comunistas, não havendo espaço para questionamentos morais ou legais.
O filme passa essa ideia de forma intensa e cristalina, incluindo um plot twist que mostra até que ponto os serviços de inteligência estavam (estão?) dispostos a ir para se manter à frente da “oposição”. No centro dessa trama está Alec Leamas, um operador do serviço secreto britânico que, após ter uma fonte executada cruelmente diante de seus olhos, está altamente motivado a eliminar a influência do impiedoso chefe do serviço de inteligência da Alemanha Oriental.
Control: Nós temos que viver sem simpatia, não temos? Mas não podemos fazer isso pra sempre. Uma pessoa não pode ficar do lado de fora o tempo inteiro. Toda pessoa tem que sair do frio.
Alec Leamas: Eu sou um operador, Control, apenas um operador.
Control: Há uma vaga na seção bancária que talvez sirva para você.
Alec Leamas: Desculpe, sou um homem operacional. Prefiro a pensão. Não quero um emprego de escritório.
Control: Você não sabe o há que no escritório.
Alec Leamas: Papel!
Control: (tomando mais um gole de chá) Quero que você fique… no frio por mais um tempo.
Mas em sua próxima missão, Leamas “sai do frio”, por assim dizer. Não estava em seus planos, mas ele conhece e se apaixona por uma jovem bibliotecária durante a preparação para o estágio seguinte. Como se não fosse o bastante, ela é filiada ao partido comunista britânico, o que o diverte mais do que o preocupa. Ele a considera ingênua em achar que o outro lado (os comunistas) é de alguma forma melhor que o lado deles (o ocidente). A essa altura, ele já sabe que essa luta não é um questão de certo e errado, mas de quem ganha e quem perde.
Dizer mais seria estragar as surpresas da história, mas deixo-os com uma das falas mais impactantes do filme:
Alec Leamas: O que diabos você acha que espiões são? Filósofos morais medindo tudo de acordo com as palavras de Deus ou Karl Marx? Pois não são! Eles são apenas um bando de bastardos sujos e acabados como eu: homenzinhos, bêbados, bichas, maridos intimidados pelas esposas, servidores públicos brincando de cowboys e índios para dar algum brilho a suas pequenas e podres vidas. Você acha que eles se sentam como monges em uma sala, tentando diferenciar o certo do errado?
Ponte de Espiões (2015)
Baseado em fatos reais, Ponte de Espiões mostra o inferno pessoal pelo qual o advogado James Donovan passa nos anos 50 ao ser destacado para defender um espião soviético pego nos Estados Unidos. Mais do que isso, mostra a firmeza moral desse homem ao defender os preceitos mais básicos da constituição americana quando ninguém mais parece disposto a fazê-lo. E, por fim, mostra como ele, um homem comum e advogado de seguros, foi uma das primeiras pessoas a orquestrar uma troca de prisioneiros com os soviético após a construção do Muro de Berlim. O título faz referência tanto à ponte de Glienicke, diversas vezes usada por espiões ocidentais e orientais para realizar troca de prisioneiros, quanto ao papel desempenhado por Donovan, como mensageiro entre espiões soviéticos e americanos.
Na primeira metade do filme, Donovan tem que lidar com toda a hipocrisia das autoridades americanas. Eles querem mostrar ao mundo como o sistema de justiça ocidental é mais justo que o soviético, dando ao acusado pleno direito de defesa e colocando Donovan como seu defensor público. Entretanto, nos bastidores, o julgamento é visto como uma mera formalidade antes de executarem o acusado, que é o que todos querem, inclusive o juiz do caso. Um dos pontos altos do filme é quando Donovan defende sua posição nesse fantástico diálogo:
Donovan: Não, eu quero dizer que realmente nós não vamos conversar sobre isso. Você está pedindo para eu violar a confidencialidade entre cliente e advogado.
Hoffman: Ah, qual é, advogado.
Donovan: Sabe, eu gostaria que pessoas como você parassem de me dizer “ah, qual é, advogado”. Eu não gostei da primeira vez que me disseram isso hoje. Depois, um juiz me disse isso duas vezes. Quanto mais eu escuto, menos eu gosto.
Hoffman: Ok, escuta só, eu entendo toda a questão dos privilégios entre cliente e advogado. Eu entendo toda as regras do jogo legal, e entendo que é assim que você ganha a vida. Mas estou falando de outra coisa aqui, da segurança do seu país. Me desculpe se a forma como eu coloco o ofende, mas precisamos saber o que Abel está te dizendo. Você entende, Donovan? Não banque o escoteiro comigo. Nós não temos um livro de regras aqui.
Donovan: Você é o agente Hoffman, certo?
Hoffman: Certo.
Donovan: De origem alemã.
Hoffman: Sim, e daí?
Donovan: Meu nome é Donovan. Irlandês, dos dois lados, pai e mãe. Eu sou irlandês e você é alemão. Mas sabe o que nos torna americanos? Uma única coisa. Uma. Apenas uma. O livro de regras. Nós o chamamos de Constituição, e nós concordamos com essas regras, e é isso o que nos torna americanos. Isso é tudo o que nos torna americanos. Então não me diga que não há um livro de regras, e não fique balançando a cabeça desse jeito, seu filho da puta.
Escrito pelos irmãos Coen e dirigido por Steven Spielberg, Ponte de Espiões é um thriller dramático bem convencional, mas que mantém o espectador interessado principalmente pela ótima atuação de Tom Hanks como um homem comum que se vê no meio de um tornado geopolítico. Em determinados momentos chega a ficar previsível, mas não menos hipnotizante.
O Conformista (1970)
Nesse drama político, o protagonista Marcello Clerici é ordenado pelos seus superiores na polícia secreta da Itália fascista a assassinar um de seus ex-professores da universidade.
Mais do que uma trama política, O Conformista é um estudo de personagem. Mais do que uma trama sobre assassinato, é um trama sobre aceitação e sobre até onde Clerici está disposto a ir para alcançá-la. Vindo de uma família rica, ausente e disfuncional, Clerici nunca realmente achou seu lugar no mundo. Na escola, era considerado diferente por ser de uma família abastada; já adulto, não precisa realmente trabalhar para sobreviver. Seu desejo mais profundo é o de ter uma vida normal e de ser aceito por seja lá qual for a tendência política do momento. Por isso, ele vê a oportunidade perfeita na polícia secreta, que garante a ordem e a normalidade do regime, e para a qual ele poderia ser um fiel burocrata. Veja que a questão não é se ele realmente concorda ou discorda com a ideologia oficial do governo, mas sim que ali ele seria aceito apenas como mais um dos fieis correligionários, sem nada de especial.
Como adulto, ele deseja realizar até o último detalhe a fantasia de família perfeita e idílica que lhe foi negada na infância, sendo este desejo seu principal motivador. Em determinado diálogo, quando afirma que está construindo uma vida normal ao se casar com uma mulher normal, Clerici inadvertidamente revela que no fundo tem mais desprezo que amor pela futura esposa, e com leveza e admiração a descreve como: “Medíocre. Um monte de ideias triviais. Cheia de ambições triviais. Ela é toda cama e cozinha.”
A dedicação de Clerici em ser aceito pela onda do momento o leva a cometer atos frios e cruéis tanto com ele mesmo quanto com os próprios amigos, especialmente durante a queda do regime fascista. A cena na qual ele presencia friamente o assassinato de uma pessoa de quem ele realmente gosta é uma das mais chocantes do cinema. É chocante não devido à violência, mas devido à inação do protagonista, que mantém uma fachada de indiferença mesmo quando uma das poucas coisas boas e autênticas de sua vida está sendo destruída bem na sua frente. O tipo de pensamento que o leva a tal extremo é belamente exposto logo no início do filme, em um diálogo entre Clerici e seu amigo fascista Italo:
Italo: Um homem normal? Para mim, um homem normal é aquele que vira o pescoço para olhar o bumbum de uma bela mulher. A questão não é apenas virar o pescoço. Existem 5 ou 6 outras razões. E ele fica feliz em poder encontrar pessoas como ele, seus iguais. É por isso que ele gosta de praias lotadas, futebol, o bar no centro da cidade (…) Ele gosta de pessoas que são similares a ele e não confia naqueles que são diferentes. É por isso que um homem normal é um verdadeiro irmão, um verdadeiro cidadão, um verdadeiro patriota…
Clerici: Um verdadeiro fascista.
Extremamente belo e com uma fotografia de tirar o fôlego, O Conformista é uma obra prima do cinema como poucas outras.
O Segredo dos Seus Olhos (2009)
Nesse policial com tons de romance, os funcionários de um tribunal, na Argentina do regime militar, tentam levar à justiça um criminoso responsável pelo estupro e assassinato de uma jovem mulher. O filme gira em torno das dificuldades que eles encontram para provar a culpa e prender o assassino, ao mesmo tempo em que a chefe do departamento (Irene Hastings, interpretada por Soledad Villamil) e o agente que protagoniza o filme (Benjamín Espósito, interpretado por Ricardo Darín) nutrem uma paixão tão intensa quanto irrealizável um pelo outro. A história é intrincada e cheia de reviravoltas, e prende o espectador do início ao fim. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o filme é uma pequena obra prima sobre paixão e justiça.
O ponto que se sobressai na estória é como (não) funciona o Estado de Direito em uma típica ditadura militar latino-americana. A primeira dificuldade encontrada pelos protagonistas é um funcionário público (Romano) que lida com o caso de assassinato brutal como se fosse apenas mais um problema do qual ele tem que se livrar, torturando dois pobres coitados até que confessassem falsamente o crime. Porém, mesmo quando os protagonistas superam esse “empecilho” e conseguem uma confissão do verdadeiro culpado, ele não fica preso por muito tempo. Para se vingar de uma agressão realizada por Espósito anteriormente, Romano tira o culpado da prisão e o nomeia agente de segurança, trabalhando armado em um prédio da justiça argentina. Amparado pela sua nova autoridade e pelo apoio dos superiores, o assassino passa a ameaçar e perseguir Espósito, que é obrigado a se mudar da cidade após um ato de violência cometido por vários agentes de segurança.
Esse é um claro exemplo de como a retórica autoritária e violenta de regimes com base militar (ou não) acabam por empoderar os pequenos ditadores do dia a dia, especialmente de forças policiais e de segurança, para agirem como bem entendem, sem temer as consequências de seus atos abusivos ou criminosos. Um padrão semelhante é apresentado no documentário O Ato de Matar ou mesmo em desenvolvimentos mais recentes em algumas partes do mundo (por exemplo). Diante desse tipo de quadro, o cidadão comum pode se ver disposto a realizar justiça com as próprias mãos, situação que tanto pode resultar em uma punição para um criminoso, como em um inocente sendo punido por um crime que não cometeu. Isso sem contar com as possíveis violações de direitos humanos que podem decorrer desses atos. Um ótimo filme que leva essa discussão até as últimas consequências é Os Suspeitos, no qual o pai de uma criança desaparecida sequestra e tortura por dias o principal suspeito de ter raptado sua filha. Ao final, o filme não faz juízo de valor em relação aos atos desse pai, deixando para o espectador julgar/decidir se o que ele fez foi justificável ou não.
Todos esses temas são tratados com franqueza e sensibilidade em O Segredo dos Seus Olhos, que é o tipo de filme que faz o espectador refletir por horas após a sessão.
Sicario: Terra de Ninguém (2015)
Em Sicario: Terra de Ninguém, uma agente do FBI (Kate Macer, interpretada por Emily Blunt) se voluntaria para participar de uma equipe de combate aos cartéis de drogas mexicanos. Imaginando ser uma força tarefa como qualquer outra, ela logo se surpreende com os métodos utilizados por eles. Além disso, ela desconhece a origem e os objetivos dessa equipe, sendo levada de um lugar para outro com o mínimo de informações possível. Logo, ela percebe que a equipe está agindo à revelia da lei, ainda que sob ordens do governo americano.
O filme mantém um constante clima de tensão, pontuado por espaças e ainda mais tensas cenas de ação. Assim como Macer, o espectador não sabe o que vai acontecer a seguir e compartilha de sua ansiedade. Correta e idealista, ela percebe que está em um ninho de víboras e, sempre que possível, tenta entender qual o objetivo final das operações que eles estão realizando.
Assim como em alguns dos filmes comentados anteriormente, Sicario mostra as claras diferenças entre as pessoas que acreditam e as que não acreditam no chamado Estado de Direito. Para essas últimas, o Estado de Direito não é capaz de lidar com o “mundo real”, que seria o mundo no qual elas devem resolver os problemas com as próprias mãos, sem responder à lei e sem fiscalização do poder público. Um questionamento semelhante é feito no ótimo Decisão de Risco, no qual uma “simples” decisão de atacar ou não terroristas prestes a cometer um atentado deve passar pelos mais variados níveis de governos, locais e externos. A pergunta feita é: até que ponto é justificável deixar agentes de campo usarem recursos públicos para concretizarem atos não aprovados por representantes do povo? Eis uma questão da nossa era.
Dirigido por Denis Villeneuve, dos ótimos Incêndios, Os Suspeitos e O Homem Duplicado, Sicario: Terra de Ninguém pode também ser considerado um belo e estiloso faroeste moderno, não devendo nada para os melhores exemplares desse gênero.