Jack Ryan: Entretenimento e Política Externa
Enquanto a terceira temporada de Jack Ryan segue atrasada devido à pandemia de COVID-19, a Amazon Prime Video adquiriu os direitos de distribuição do filme Sem Remorso, que também é derivado do universo literário de Tom Clancy e deveria ter estreado nos cinemas em 2020. O protagonista da produção é John Clark (Michael B. Jordan), personagem que geralmente serve como coadjuvante nas histórias de Ryan mas que provavelmente vai ganhar sua própria franquia (o próximo filme seria baseado em Rainbow Six).
Isso leva os fãs a levantarem duas perguntas. Primeiro, o John Clark de Jordan existe no mesmo universo que o Jack Ryan de John Krasinski, estrela da série? Em segundo lugar, Sem Remorso vai seguir o foco na ação típico da série ou irá incorporar os complexos temas geopolíticos comuns nos filmes anteriores? No universo de Clancy, Clark é acima de tudo um homem de ação, sendo muito mais capacitado do que Ryan para recorrer a soluções militares.
A série Jack Ryan funciona muito bem como thriller de ação, mas não faz jus às tramas mais cerebrais do passado do personagem. Os filmes protagonizados por Ryan sempre possuíram um tom mais sério, se distanciando de caricaturas do mundo da espionagem, como as das franquias 007 e Missão Impossível. Porém, a série não consegue ser tão inteligente e elaborada quanto os filmes anteriores, recorrendo a tramas rasas e previsíveis que só servem para atrasar o prato principal: a ação.
O Jack Ryan da série está muito mais próximo dos heróis de ação típicos dos anos 1980, que são idealistas e impulsivos e que enxergam o mundo em preto e branco, certo e errado. E quando encontram algo errado, toda a violência é justificada. Além disso, a série faz questão de mostrar os EUA como uma força positiva no mundo, com os espiões e militares americanos salvando o dia nos mais diferentes países e com diferentes níveis de violência. O tom patriótico é abertamente defendido por Krasinski, que vem de uma família de militares e faz questão de homenagear os defensores do país em seu trabalho.
Essa abordagem não deixa espaço para questionamentos morais como aqueles feitos nos filmes anteriores ou em séries de espionagem como Condor (resenhas aqui e aqui) e Homeland. Enquanto as tramas de Condor refletem os níveis de desconfiança e paranoia causados pela atuação dos serviços de inteligência e pela política externa dos EUA, a série Jack Ryan segue alheia às questões éticas relacionadas a elas, considerando-as justificáveis em nome da defesa do país e colocando os EUA como a “polícia do mundo”. Nesse sentido, a própria série pode ser considerada uma ferramenta da política externa do país, mostrando a atuação de seus agentes como o governo quer que ela seja vista.
Jack Ryan no Ryanverso
Em Caçada ao Outubro Vermelho, autoridades soviéticas e americanas entram em estado de alerta quando um capitão soviético (interpretado por Sean Connery) desaparece com um submarino nuclear que não pode ser detectado por radares. Qual seria seu objetivo? Vender as tecnologias presentes na embarcação? Atacar os EUA e começar uma guerra? Atacar a própria União Soviética? Enquanto as autoridades tentam solucionar o mistério, o analista da CIA Jack Ryan (Alec Baldwin), sob a supervisão do Vice-Almirante James Greer (James Earl Jones), surge com uma explicação pela qual ele está disposto a arriscar a própria vida.
Em Jogos Patrióticos, as férias de Jack Ryan (Harrison Ford) na Inglaterra são interrompidas quando ele intervem em um ataque contra um membro da família real britânica. Isso coloca ele e sua família na mira de terroristas de uma facção do IRA, que cruzam o mundo em busca de vingança. O Almirante James Greer, diretor da CIA, é mais uma vez interpretado por James Earl Jones. O filme iria contar tanto com Alec Baldwin quanto com o diretor de Caçada ao Outubro Vermelho, mas Baldwin se afastou da produção devido a problemas na negociação (envolvendo, inclusive, a aprovação do roteiro) e o diretor se afastou por não concordar com a representação dos irlandeses como terroristas sanguinários e impiedosos.
Em Perigo Real e Imediato, depois que a saúde do Almirante James Greer (James Earl Jones) piora significativamente, Jack Ryan (Harrison Ford) é promovido e se vê no fogo cruzado de uma guerra suja entre narcotraficantes colombianos e a Casa Branca. Sem o conhecimento de Ryan, assessores políticos e membros da CIA montam uma operação ilegal, liderada por John Clark (Williem Dafoe), para vingar a morte de um amigo do presidente. Ryan precisa então lidar com os muitos problemas causados pela operação e salvar os sobreviventes da equipe de Clark.
Em A Soma de Todos os Medos, Jack Ryan (Ben Affleck) e o diretor da CIA William Cabot (Morgan Freeman) encontram inconsistências durante uma inspeção de armas nucleares russas e convocam a ajuda de John Clark (Liev Schreiber) para ajudá-los a investigar. Eles descobrem um grupo neonazista que pretende realizar um ataque nuclear nos EUA, com o intuito de começar uma guerra entre o país e a Rússia.
Em Operação Sombra: Jack Ryan, o jovem veterano de guerra Jack Ryan (Chris Pine) é recrutado pelo agente da CIA Thomas Harper (Kevin Costner) para trabalhar como um analista econômico. Um tempo depois, Ryan está trabalhando em Wall Street a serviço da agência quando encontra uma série de transações suspeitas realizadas por um bilionário russo. A investigação os leva a Moscou e revela uma conspiração que pode causar um colapso financeiro nos EUA.
Na primeira temporada de Jack Ryan, Ryan (Krasinski) descobre uma série de transações financeiras que estão indo para um terrorista e é convocado pelo agente James Greer (Wendell Pierce) para ajudá-lo na investigação. Na segunda temporada, o assassinato de um senador americano os coloca no meio de uma conspiração envolvendo um ditador da Venezuela que é ainda mais caricato do que o da vida real. Ao invés de John Clark, a série conta com o especialista em black ops Matice (John Hoogenakker) para realizar as missões mais sensíveis.
Política Externa
Um indicativo de que Sem Remorso pode recuperar a sofisticação política da franquia é o envolvimento do roteirista Taylor Sheridan. Ele já fez comentários sobre a política externa dos EUA tanto nos filmes Sicario: Terra de Ninguém e Sicário: Dia do Soldado (crítica aqui) quanto na série Yellowstone (resenha aqui). Além disso, Stefano Sollima, diretor de Dia do Soldado, também é o diretor de Sem Remorso, o que pode ser mais um indicativo dos rumos que a franquia pretende tomar.
O que Sheridan faz nesses trabalhos é trazer elementos da política externa para um ambiente interno ou mais próximo dos EUA. Os dois filmes da franquia Sicário mostram a bagunça causada pelo governo americano quando o Departamento de Defesa decide aplicar no México as mesmas técnicas de guerra suja que aplica no Oriente Médio. Neles, agentes da CIA contratam assassinos e cometem crimes nos dois lados da fronteira para combater o narcotráfico ou forçar o governo mexicano a ampliar o combate, o que significa mais conflitos armados e mais violência. Os resultados são, nos melhores casos, extremamente questionáveis.
No caso de Yellowstone, escrevi sobre isso na crítica da terceira temporada:
No episódio final, a acuada CEO da Market Equities, Willa Hayes (Karen Pittman), chega à conclusão de que sua tentativa de adquirir terras no estado de Montana está cada vez mais parecendo uma tentativa de adquirir petróleo no Oriente Médio, e ela passa a tratar a situação como tal. Ou seja, a multinacional vai usar contra os Dutton técnicas de guerra suja que os americanos geralmente reservam para terroristas e oligarcas que contrariam os interesses do país no outro lado do mundo. Quem já viu filmes como Syriana: A Indústria do Petróleo e Vice (crítica aqui) sabe do que se trata.
O filme Syriana: A Indústria do Petróleo é inspirado nas memórias do agente da CIA Robert Baer, que trabalhou por décadas na agência e se mostrou surpreso com o que viu nos seus anos finais. A página sobre o livro na Wikipedia diz:
A seção final das memórias lida com a experiência de Baer com a política do petróleo em Washington, incluindo a grande influência oferecida aos lobistas por um governo focado nos aspectos políticos e ignorante sobre os aspectos estratégicos. Em determinado ponto, Baer fica chocado quando lhe pedem para aprovar a venda de um sofisticado sistema de defesa americano para um ex-membro do bloco soviético como incentivo para a nação participar de uma transação de petróleo, apesar do país ter recentemente obstruído a investigação do assassinato de um diplomata americano em seu território.
Esse é apenas um dos tipos de trama que a série Jack Ryan poderia estar explorando. Há também casos como o do bilionário Beny Steinmetz e o problema do terrorismo doméstico nos EUA, ou tramas como as dos filmes O Sistema e O Mediador (crítica aqui). O caso da Venezuela é bem revelante, mas foi abordado de forma previsível e superficial na segunda temporada da série, sem realmente mergulhar na complexa situação política do país e nem levantar questões relevantes.
É claro que essas abordagens mais realistas não são necessárias, mas podem contribuir significativamente para tornar as histórias de Jack Ryan e John Clark mais envolventes e relevantes para a nossa época. Um patriotismo que se mostra incapaz de questionar as políticas da própria pátria pode ser muito mais nocivo do que benéfico para a nação.