Demolidor: Renascido e em Crise de Identidade


O acordo que permitiu que a Netflix produzisse várias séries com personagens da Marvel exigia que cada temporada tivesse, no mínimo, 13 episódios. Isso sempre era sentido pelos espectadores, que precisavam passar por alguns episódios de “enrolação” até chegar no grande final. Com apenas 9 episódios, Demolidor: Renascido não sofre com esse problema e consegue manter o foco ao longo da temporada.

Mas a série vem com mais uma surpresa. Além dos dilemas entre justiça e vigilantismo que marcaram as três temporadas de Demolidor, a série agora conta com um forte componente político, servindo como comentário sobre eventos no mundo real. Mais que isso, ela realça ainda mais a diferença entre as filosofias de Matt Murdock/Demolidor (Charlie Cox) e de Frank Castle/Justiceiro (Jon Bernthal) como vigilantes.

demolidor: renascido

Enquanto uma grande tragédia afasta Murdock da máscara do Demolidor, seu arqui-inimigo Wilson Fisk/Rei do Crime (Vincent D’Onofrio) se torna prefeito de Nova York. Porém, tanto Murdock quanto Fisk parecem estar genuinamente mudados. Fisk parece estar realmente tentando se afastar do mundo do crime, enquanto Murdock se dedica apenas à advocacia para tentar fazer a diferença nas ruas da cidade.

Essas mudanças de paradigma revelam dois personagens em crises de identidade. Eles tentam se afastar das atividades que os definiam e se reinventar. No caso de Murdock, isso significa abandonar uma parte de quem ele era. No caso de Fisk, isso significa mudar da água para o vinho, deixando para trás não apenas seus associados no mundo do crime mas também seu apetite pela violência.

Obviamente, esses dois esforços de transformação estão fadados ao fracasso, mas é bem interessante ver como eles chegam lá.

No caso de Murdock, ele tenta acreditar que o Demolidor é completamente desnecessário e que sua atuação como advogado criminalista é suficiente para construir um mundo melhor. Ao contrário do Justiceiro, ele não age à revelia de um sistema imperfeito, mas está sim tentando aperfeiçoar esse sistema, que seria o estado de direito. Dessa vez, ele também está tentando salvar a alma de uma cidade que acabou de eleger um violento mafioso como prefeito.

Diante de ondas de crime e de outros problemas que nunca são resolvidos, a população pode começar a ter fantasias sobre “homens fortes” que chegam e fazem a diferença. Tomadas pelo medo e pela sensação de insegurança, as pessoas começam a ansiar não por justiça, mas sim por extermínio. A grande questão nesse tipo de situação é: quem será capaz de controlar os exterminadores?

Ou, invocando uma antiga citação que é o tema central de Watchmen: quem vigia os vigilantes?

Depois de lidar com vários opositores, burocracias e problemas de imagem pública, a gota d’água para Fisk ocorre quando ele é rejeitado pelas elites da cidade. O agora prefeito volta para as suas práticas criminosas sem maiores dificuldades. Ele continua dizendo que quer apenas o bem da cidade e de sua população, mas esse é um “bem” que também irá deixá-lo muito mais rico do que ele já é.

E ele faz isso enquanto mantém uma imagem de rigor e honestidade. A questão aqui é que a parte da cidade que o idolatra será incapaz de enxergar qualquer imperfeição em seu “salvador”. Por mais que Fisk esteve envolvido em atividades criminosas que sempre apareciam associadas a ele nos jornais, nenhum de seus apoiadores será capaz de se lembrar do passado criminoso do prefeito. Assim como Murdock e Fisk, a Nova York de Demolidor: Renascido também está passando por uma espécie de crise de identidade.

E assim, Fisk é capaz de montar uma “força tarefa” que parece muito mais uma milícia armada agindo à revelia da lei. Como já aconteceu várias vezes na História, esse “esquadrão da morte” é utilizado tanto para pegar criminosos comuns quanto para perseguir e intimidar os adversários do político que está no poder.

É impossível não notar a semelhança entre essa situação e os três primeiros meses do mais recente governo de Donald Trump na presidência dos EUA. Talvez as semelhanças nem sejam propositais, mas tanto Trump quanto o Fisk de Demolidor: Renascido seguem uma cartilha bem conhecida para quem já estou a História de regimes ditatoriais.

No caso de Trump, sua “força tarefa” seria o ICE, uma polícia de imigração que deveria ir atrás de imigrantes ilegais mas que está cada vez mais deportando pessoas com vistos válidos (detalhes em inglês aqui, aqui e aqui). Outra semelhança é a obsessão de Trump em contratar pessoas com base em sua “lealdade” pessoal a ele, e não com base na capacidade profissional ou na lealdade às leis do país.

Além disso, Trump já utiliza seu poder presidencial contra adversários políticos (detalhes aqui, aqui e aqui), um forte sinal de imaturidade e uma prática comum em regimes ditatoriais. Na série, Fisk vai além, investindo no caos para declarar lei marcial e impor um toque de recolher na cidade, lembrando o filme Nova York Sitiada.

A última crise de identidade presente em Demolidor: Renascido é a de Frank Castle. O personagem segue em sua impiedosa cruzada contra os criminosos da cidade, matando-os sem piedade e sem hesitação. Porém, isso faz com que Castle também se encaixe na fantasia de “homem forte” e sem limites ao qual uma população amedrontada recorre.

Por isso, não deveria ser uma surpresa que a milícia de Fisk se inspire nele e o considere um herói. Do ponto de vista do policial Powell (Hamish Allan-Headley) e de seus comparsas, o Justiceiro é igual a eles. Nenhum deles de preocupa com a coleta de provas ou com o devido processo legal. Há apenas as sentenças de morte decididas e executadas nas ruas da cidade.

A única coisa que Frank tem a seu favor é que ele não trabalha para algum político, seja ele honesto ou corrupto. Mas isso também significa que Frank não tem como fazer uma diferença significativa na realidade da cidade. Por mais ele tenha desmantelado algumas organizações criminosas nas duas temporadas de O Justiceiro, não há como ele executar todos os criminosos da cidade e dar o trabalho como concluído.

Por mais que ele despreze o “sistema” defendido por Murdock, o estado de direito ainda é a melhor opção. Sem ele, as ruas se tornam uma zona sem lei na qual várias facções se consideram no direito de serem “justiceiras” e executarem qualquer pessoas que elas considerem criminosos ou apenas opositores. A grande questão é como Castle vai lidar com tudo isso na próxima temporada de Demolidor: Renascido.

É claro que essas questões podem se tornar problemáticas para o próprio Demolidor, que também pode servir como inspiração para vigilantes mascarados bem menos éticos que ele. Essa temática já foi explorada tanto na série Watchmen quanto no mais recente filme do Batman. Nesse último, o Homem-Morcego é surpreendido pelo fato de que o grande vilão acredita estar do mesmo lado que o herói e terá todo o seu apoio.

Por fim, o Demolidor de Demolidor: Renascido está cada vez mais se tornando uma espécie de “Batman da Marvel”. Além da história estar mais sombria e dos personagens sofrerem perdas significativas, o ângulo político deixa a trama ainda mais próxima da vida real de muitas pessoas. Resta saber se na segunda temporada ele será um tipo diferente de “cavaleiro das trevas”, sendo tanto o herói que Nova York precisa (como advogado) quanto o herói que ela merece (como vigilante).