Crítica: Expresso do Amanhã
Snowpiercer, Coreia do Sul/República Tcheca, 2013
Muita ação, muita tensão e muito cérebro nessa fantástica obra de ficção científica
★★★★☆
Talvez eu não deveria estar escrevendo tão cedo sobre Expresso do Amanhã, pois ainda estou me recuperando da experiência que é assistir essa ótima ficção científica. Depois de mais de 1 ano de hype, minhas expectativas estavam um pouco altas e já estava preocupado com qual seria o tamanho da minha decepção. Porém, o filme vai muito além do esperado e surpreende em vários aspectos. O principal deles é a impiedosa sátira da condição humana e do raciocínio dos homens que estão no topo da pirâmide social; como justificam sua condição, seus atos e o fato de se considerarem superiores à plebe. De quebra, isso é feito com uma boa dose de ação, violência e de forma estilosamente sombria. Esse estilo muitas vezes fica perturbador e dá um tom de pesadelo absoluto em várias sequências de ação.
A história se passa em um futuro apocalíptico no qual a Terra está em uma nova e letal era glacial. Qualquer humano que fique exposto à atmosfera do planeta morre congelado depois de alguns minutos. Os últimos sobreviventes da humanidade se encontram em um mega-trem, uma espécie de Arca da Vida, isolado do clima externo e em movimento perpétuo. O sistema de classes de viagem que existia quando eles embarcaram é mantido dentre seus moradores, e a estratificação social se dá de acordo com a posição dos vagões: os do fundo abrigam os mais pobres e miseráveis, enquanto os da frente abrigam uma elite que vai ficando cada vez menor quanto mais adiante o vagão se encontra. Nesse contexto, Curtis (Chris Evans), um dos líderes dos vagões do fundo, começa a organizar um novo levante, com o intuito de tomar a frente do trem e dar uma vida decente a todos aqueles excluídos. Uma vez que esse levante tem início, Curtis e seu pequeno exército avançam vagão a vagão e fica claro que eles não estão preparados para enfrentar o que está por vir.
Com essa premissa, “Expresso do Amanhã” poderia ser mais um filmaço de ação com cenas de tirar o fôlego até a eventual e grandiosa derrocada do vilão. As cenas de ação de tirar o fôlego estão presentes, mas elas te deixam sem ar não por serem fantásticas, mas por serem extremamente tensas. Estamos falando de conflitos sanguinários em espaços apertados e claustrofóbicos. Algumas das situações beiram um estiloso pesadelo e você sabe que, mesmo que vençam, os rebeldes irão passar por momentos traumáticos. Além de tensos, esses momentos são carregados de metáforas para a nossa sociedade e pouco a pouco vão revelando o lado mais político e satírico do filme. Destaque para a personagem de Tilda Swinton, que é a responsável por manter a massa sob controle e dá os discursos mais simbolicamente representativos da nossa realidade, desde as metáforas que usa até os gestos que faz com as mãos.
“Saibam qual o seu lugar. Aceitem o seu lugar. Sejam o sapato.”
Porém, o ato final carrega apenas a tensão dos dois primeiros. Esse terceiro ato pode decepcionar quem esperava mais ação e mais cenas épicas, pois é mais cerebral e até mesmo anti-climático, pra não dizer sombrio e pessimista. O núcleo rebelde restante está cansado e psicologicamente em frangalhos (com direito a revelações realmente chocantes sobre o passado de um deles), e é nesse momento que eles devem enfrentar o mais perigoso dos vilões: Wilford (Ed Harris), criador e senhor supremo do trem. Mas Wilford não possui um exército que o cerca ou algum fantástico sistema de armas/segurança. Morando sozinho no primeiro vagão (o que é uma clara referência aos 1% mais ricos do nosso mundo) e contando apenas com uma guarda-costas, sua principal arma é sua ideologia. Ele tenta convencer o nosso herói de que aquela organização rígida das classes do trem é necessária para a sobrevivência de todos. E mais do que convencer o protagonista, o raciocínio que ele utiliza é capaz de convencer o espectador. Sei disso porque já conheci várias pessoas que pensam de forma semelhante.
É isso o que diferencia Wilford de outros vilões que tentam levar seus adversários para “o lado escuro”. Ele não oferece apenas riqueza ou poder, mas sim uma explicação racional para aquela realidade e porque ela deve ser mantida. Sem entrar em mais detalhes, me limito a dizer que a principal das falácias do raciocínio de Wilford é revelada quando percebemos os sacrifícios que ele está disposto a fazer. Toda vez que alguém que pensa daquela forma precisa tomar uma chamada “decisão difícil”, ele dificilmente corta na própria carne, mas facilmente sacrifica os outros. Ele acredita que está exatamente onde merece estar e quem está no fundo do trem está lá por culpa própria. Algo equivalente ao “pobre é pobre porque quer.” Mais que isso, eles precisam de um líder para guiá-los ou cairão na selvageria, e ele é um desses líderes. Vale lembrar que essas ideias não são defendidas apenas por aqueles que estão no topo e tem uma boa aceitação dentre as classes médias do mundo.
Fora isso, existem inúmeras outras questões levantadas pela história, como a instrumentalização do homem e questões de controle populacional. Intenso, inteligente e imprevisível, “Expresso do Amanhã” é um dos filmes obrigatórios do ano, e merece ser assistido e re-assistido.