Crítica: The Way Down (A Queda) – Parte 1
The Way Down: God, Greed and the Cult of Gwen Shamblin, EUA, 2021
Minissérie documental The Way Down mostra um perfeito exemplo de uma seita cristã tão insólita quanto abusiva
★★★★☆
Inicialmente, o que mais impressiona em The Way Down: God, Greed and the Cult of Gwen Shamblin (A Queda: Deus, Avareza e o Culto de Gwen Shamblin) é que a líder religiosa Gwen Shamblin fundou uma igreja baseada em um programa de emagrecimento. Porém, conforme as revelações vão sendo feitas, a história vai ficando cada vez mais perturbadora, deixando claro que sua congregação se tornou uma poderosa e abusiva seita religiosa. Apenas três dos cinco episódios da minissérie foram lançados até agora, com o lançamento dos dois últimos previsto para o início de 2022.
A minissérie mostra como a Remnant Fellowship Church (“Igreja da Irmandade Remanescente”, em tradução livre) apresenta todas as características de uma típica seita abusiva, como: um líder carismático e autoritário, pessoas sempre “felizes” e “bombardeadas” de amor, exigência de obediência total, negação de tudo o que é externo à igreja, proibição de relacionamentos (amorosos, familiares, amizades, etc.) fora da igreja, punição de quem questiona ou decide sair da congregação e promessas de salvação para os que ficam. Em suma, todos os congregados ficavam sob o controle absoluto de Gwen Shamblin.
Ainda nos anos 1990, Shamblin criou um programa de emagrecimento que misturava práticas convencionais de nutricionismo com a doutrina cristã, fazendo afirmações como “Deus quer que você seja magro” ou “você precisa parar de se curvar para a geladeira e começar a se curvar para o Senhor”. Em uma região dos EUA marcada pelo fervor religioso, esse discurso atraía tanto pessoas que precisavam emagrecer por motivos de saúde quanto pessoas obcecadas com a aparência. Independente do motivo, Shamblin tinha não apenas a doutrina, mas também os livros, vídeos e workshops para vender aos interessados.
Enquanto seus ganhos financeiros aumentavam, seu discurso religioso ficava cada vez mais controverso, chegando a questionar alguns dos dogmas do cristianismo. Isso a levou a fundar sua própria igreja, que lhe dava tanto independência teológica quanto privacidade financeira. Essa é uma história que caberia muito bem como um episódio da série documental A Indústria da Cura, além de exemplificar perfeitamente a facilidade com a qual o discurso religioso pode ser manipulado por pessoas problemáticas, tema que foi explorado recentemente na minissérie de ficção Missa da Meia-Noite (crítica aqui).
The Way Down também lembra a fantástica minissérie documental Wild Wild Country, apesar de ter bem menos reviravoltas. Enquanto o primeiro episódio apresenta o “reino” de Shamblin, o segundo mostra como ela e seu marido utilizam o poder financeiro e a influência da igreja para defender os interesses dos congregados. Esse poderio é utilizado especialmente em casos de divórcios litigiosos nos quais os pais disputam a guarda dos filhos, pois é do interesse de Shamblin que as crianças fiquem com o lado que permanece na igreja.
Isso fica ainda mais perturbador (e, até mesmo, difícil de assistir) quando o terceiro episódio mostra como a igreja incentivava a punição física das crianças desobedientes, defendendo os espancamentos até que a criança ficasse completamente retraída e submissiva. Esse lado da igreja veio à tona ainda nos anos 2000, quando as práticas recomendadas por Shamblin culminaram na morte de uma criança. Mesmo com a vítima apresentando inúmeros sinais de violência sistemática, a igreja adotou a tese de que a morte havia ocorrido por causas naturais e ajudou a custear a defesa dos pais.
Em 29 de maio de 2021, depois que os realizadores de The Way Down já haviam recolhido todas as entrevistas e estavam dando os toques finais na minissérie, Gwen Shamblin morreu em um acidente de avião, no qual também faleceram seu marido e alguns outros líderes da congregação. Enquanto os entrevistados ficaram preocupados com a possibilidade de cancelamento da produção, outras pessoas mudaram de ideia e decidiram participar dela. Esse artigo do New York Times afirma:
Os cineastas também disseram que desde o acidente eles encontraram mais pessoas com vontade de falar – ex-congregados que disseram que não estavam dispostos a ir contra a igreja publicamente porque ainda tinham familiares afiliados a ela, além de parentes das pessoas que morreram no acidente, que eram céticos em relação à igreja e que agora se sentem na obrigação de compartilhar suas histórias.
Isso explica o adiamento dos dois últimos episódios da minissérie e sinaliza que eles talvez incluam novas histórias ocorridas na igreja. O que está confirmado até agora é que a segunda parte de The Way Down: God, Greed and the Cult of Gwen Shamblin vai cobrir tanto o acidente que matou os principais líderes da igreja quanto a continuação dos cultos e das atividades econômicas sob a nova liderança da congregação. Claramente, essa é uma história que ainda não chegou a sua conclusão.