Crítica: Sicário – Dia do Soldado

Sicario: Day of the Soldado, EUA, 2018



Maduro, cruel e reflexivo, sequência da obra-prima de 2015 vai mais fundo na escuridão

★★★★☆


Apesar das cenas iniciais de Sicário: Dia do Soldado indicarem que essa continuação teria um escopo mais amplo que o original, a trama de terrorismo e geopolítica é apenas o pano de fundo para uma história sobre soldados, sejam eles do governo ou do crime. Dessa vez, o agente da CIA Matt Graver (Josh Brolin) e o sicário Alejandro Gillick (Benicio Del Toro) têm carta branca e o mínimo de supervisão para tentarem atender as demandas do Departamento de Defesa dos EUA. Porém, as ações ilegais que eles realizam durante a missão resultam em consequências pessoais que nenhum dos dois poderiam prever.

Enquanto em Sicario: Terra de Ninguém o espectador é introduzido gradualmente, junto com a protagonista Kate Macer (Emily Blunt), a um mundo sombrio que existe além do alcance legal, aqui já caímos direto nele. Naquele filme, Graver e Gillick são apenas duas figuras misteriosas que revelam o mínimo possível sobre eles mesmos e o trabalho que fazem. Dia do Soldado mostra um outro lado desses personagens, revelando como eles são quando não têm nada a esconder e quando finalmente são atingidos emocionalmente. Ao invés de seus coletes, a ação nessa sequência perfura a armadura emocional de seus protagonistas.

E a ação é um dos grandes destaques do filme. A narrativa explora o poderio militar norte-americano com cenas que usam diversas modalidades de ataque e de veículos de combate. A equipe tática liderada por Graver usa tanto Humvees quanto helicópteros Black Hawk durante as missões, além da grande quantidade de equipamento que cada soldado pode levar consigo. Eles também contam com o suporte aéreo de um drone de reconhecimento e ataque, que se mostra muito útil quando eles se encontram sob fogo inimigo. Entretanto, o “inimigo” inclui forças policiais mexicanas, o que pode gerar um sério incidente diplomático entre o México e os EUA.

A ação reflete um dos principais temas dos dois filmes: a militarização do combate ao crime. Ao invés de combater organizações criminosas por meios legítimos, muitos governos tentam lidar com o problema da violência por meio da aplicação de ainda mais violência. Com isso, as forças públicas permitem que os criminosos estabeleçam a natureza e os termos do conflito: situações que poderiam ser resolvidas ou mitigadas com políticas públicas acompanhadas com o mínimo de atuação policial se transformam em casos de guerrilha urbana ou rural.

Exemplos de políticas que poderiam ser aplicadas são a descriminalização de certas drogas, que hoje movimentam uma bilionária economia ilegal, e o amparo social a jovens pobres que poderiam vir a engrossar as fileiras de organizações criminosas, tanto nas ruas quanto em presídios.

Mas a quem interessa a abordagem da guerra contra as drogas? Em determinado ponto de Sicário: Dia do Soldado, Graver finalmente escuta um “não” de seus superiores, graças ao custo político que os problemas na missão poderiam causar. Quando ele reage dizendo que “é por isso que as coisas não mudam”, sua superiora direta Cynthia Foards (Catherine Keener) fuzila de volta: “Você realmente acha que isso se trata de mudar as coisas? Sério? Você está há tempo demais nesse ramo para acreditar nisso.”

Em outro momento, Graver negocia diretamente com um fornecedor de material militar, que consegue um contrato anual (em caso de ação militar contínua) multimilionário a ser pago via uma empresa de fachada sediada no Brasil. Em outras palavras, a indústria armamentista precisa de guerras, pois ela não seria economicamente viável em tempos pacíficos demais.

Dia do Soldado continua focado nos cartéis mexicanos, mas deixa o tráfico de drogas um pouco de lado e foca na outra grande atividade econômica realizada por eles: o tráfico de imigrantes ilegais. Se um carregamento de drogas é apreendido, os cartéis ficam no prejuízo; se um imigrante ilegal é pego e extraditado, é possível que ele pague novamente para tentar fazer a mesma travessia.

O reforçamento das fronteiras causado pelos ataques terroristas mostrados no início da projeção pode ter apenas o efeito de aumentar o preço cobrado. Dessa forma, esse tipo de medida funciona muito bem para dois dos grupos envolvidos: enquanto o governo americano aumenta sua popularidade ao projetar a imagem de que está protegendo as fronteiras, os “coiotes” a serviço dos cartéis aumentam seus lucros ao continuar conduzindo imigrantes como se fossem gado.

É diante desse cenário que o Departamento de Defesa encarrega Graver de iniciar uma guerra entre os cartéis, com o intuito de justificar uma intervenção americana. Ele recruta Gillick e dá início a uma série de operações de falsa bandeira, incluindo o sequestro de Isabel Reyes (Isabela Moner), filha do líder de um dos cartéis. Quando um evento inesperado interrompe esses planos e deixa Gillick e Isabel isolados ao sul da fronteira, o sicário finalmente encontra um limite moral.

Talvez Isabel seja parecida demais com sua falecida filha, ou talvez ela o lembre da vida que ele poderia ter tido; o fato é que algo toca o coração do impiedosos assassino (no filme anterior, ele já havia executado toda a família de um narcotraficante sem pensar duas vezes) e isso apenas complica a situação.

Apesar de Brolin e Del Toro continuarem ótimos como os homens implacáveis e amorais que fazem o trabalho sujo do governo americano, nenhum dos personagens tem o carisma da Kate de Emily Blunt. Sua ausência é parcialmente compensada pela introdução de Isabel, cujo ponto de vista também é usado para colocar o espectador dentro da ação. A feroz interpretação de Isabela Moner é vital para que essa personagem funcione e não caia em clichês óbvios e previsíveis.

Já Elijah Rodriguez dá a profundidade necessária ao jovem Miguel Hernandez, que é introduzido ao mundo do crime por um primo e tem um papel central no desfecho da narrativa. A presença desses dois jovens, já parcialmente corrompidos, aumenta o impacto de uma trama sombria que mostra um mundo violento e pessimista.

O roteiro de Taylor Sheridan, cujo fantástico trabalho já discuti na crítica de Terra Selvagem, subverte muitas das expectativas que se tinha sobre essa produção. Apesar do ritmo acelerado e das cenas de ação o colocarem facilmente na categoria de blockbuster do verão americano, seu desfecho pode decepcionar quem estava esperando uma conclusão convencional. Não há nenhum grande inimigo derrotado ou objetivo importante atingido, elementos que estão presentes no primeiro filme. Boa parte da ação se concentra na primeira metade da projeção, enquanto a segunda se trata mais de um passeio pela escuridão que reduz seus protagonistas a frangalhos (ver os Comentários com Spoilers abaixo). Talvez essa esperada conclusão venha em um eventual terceiro filme, que ainda não foi anunciado mas para o qual Sheridan já tem ideias.

Ainda que a direção de Denis Villeneuve (responsável por Sicario: Terra de Ninguém) faça falta nas cenas mais dramáticas, o diretor italiano Stefano Sollima dá um novo ar às cenas de ação. Os tiroteios são filmados de forma a aumentar o impacto visual, seja com enquadramentos amplos tendo o deserto como pano de fundo ou seja do interior de veículos que estão recebendo rajadas de tiros. O grande destaque vai para as cenas envolvendo helicópteros, filmadas com uma câmera que se movimenta como eles e que os coloca no primeiro plano enquanto enquadram belamente a estrada e os carros abaixo.

Com memoráveis cenas de ação e uma história que toca em alguns dos aspectos mais sombrios da condição humana, Sicário: Dia do Soldado é um filme maduro, cruel e reflexivo. Ainda que parte do público escolha não enxergar o que há sob sua superfície e o interprete como uma glorificação da violência e do militarismo, o enredo denuncia uma realidade que deveria ser evitada ao invés de exaltada. Mais que isso, ele toca nos nervos expostos de homens que consideram toda essa violência como o verdadeiro aspecto do nosso mundo. Em seu ato final, Dia do Soldado desconstrói parte da autoimagem masculina de guerreiros tão frios quanto implacáveis.

Comentários com Spoilers

O grande momento de Sicário: Dia do Soldado é o close no rosto de Graver enquanto ele assiste ao vivo a “execução” de Gallick, um momento que o atinge em diversas camadas. Esse é um grande triunfo de Josh Brolin como ator, que nesse momento é capaz de mostrar toda uma gama de sentimentos através de uma atuação intensa, tocante e minimalista.

Naquele momento, Graver está assistindo um dos maiores ou o maior “guerreiro” que ele já conheceu se debatendo desesperadamente até ser executado por um adolescente tímido que está tentando provar a própria coragem. Amarrado, amordaçado e vendado, Gallick tem o mesmo destino das “ovelhas” aos quais eles se consideram tão superiores. Aquele poderia ser um fim indigno e, naquele mundo, ordinário para o “super-sicário” que aterroriza os cartéis.

Não fica claro se realmente há uma relação de amizade entre os dois personagens, mas certamente há pelo menos um grande respeito mútuo. Da mesma forma que ele força um terrorista a assistir o assassinato de seu irmão no início do filme, Graver é forçado a assistir ao fim de Gallick enquanto está longe e completamente impotente para fazer qualquer coisa a respeito. De repente, ele se vê quase tão vulnerável quanto aquele terrorista.

Talvez o que realmente o incomode seja o fato de que ele está vendo a si próprio naquela situação. Se algo como aquilo pode acontecer com um implacável soldado como Alejandro, talvez o mesmo destino o espere em algum ponto do futuro. E se algum dia o governo americano resolver “cortar os laços” e ele se torne o soldado dispensável? Kate Macer, uma agente do FBI, quase foi “suicidada” no fim de Sicario: Terra de Ninguém, e Graver percebe que ele também não está acima disso. Ao assistir aquelas imagens, ele se vê confrontado com a própria mortalidade.

Suas fantasias de soldado intocável e invencível são destruídas naquele momento. Em alguns poucos segundos, ele reavalia toda sua vida e as decisões que tomou ao longo de sua carreira. Depois de tudo o que tinha feito, de todas as ordens que cumpriu, de todas as vidas que tirou, de todo o poder que exerceu, de todas as vitórias que teve, era aquilo que o esperava? Onde está a glória, a grandiosidade? Assim como os jovens cheios de testosterona que são atraídos por essa vida de violência, ele começou a acreditar na própria lenda e se esqueceu que o dia de todo soldado há de chegar. E, na maioria das vezes, não há glória envolvida.