Crítica: Pequenas Coisas Como Estas

Small Things Like These, Irlanda/Bélgica, 2024



Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes

★★★★☆


Mesmo sendo pequeno em escala e tendo uma narrativa íntima e soturna, Pequenas Coisas Como Estas ecoa por realidades comuns em muitos pontos do mundo e em muitos pontos da História. Esse retrato do conflito moral de um homem também serve como um retrato dos conflitos morais ainda existentes em nossas sociedades. Suas incertezas, sua impotência e as pressões que ele sofre também existem de forma semelhante em escalas muito maiores.

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Ambientada em uma pequena cidade irlandesa em 1985, a trama de Pequenas Coisas Como Estas só é realmente disparada quando o protagonista Bill Furlong (Cillian Murphy) presencia uma determinada cena: uma adolescente aos gritos é internada a força em um convento local, sendo arrastada para dentro por sua mãe e por uma freira enquanto pede a ajuda de seu pai. Para os locais, esse deve ser apenas mais um caso de uma adolescente “problemática” sendo colocada em um local que pode “consertá-la”.

Para Bill, a cena é estranhamente perturbadora, talvez por ele ser pai de cinco meninas. De repente, ele também se vê pensando em sua infância, já que sua mãe poderia ter ido parar em um dos asilos de Madalena quando engravidou fora do casamento. Felizmente, o pequeno Bill (Louis Kirwan) e sua mãe (Agnes O’Casey) foram acolhidos pela empregadora dela, a abastada Sra. Wilson (Michelle Fairley). Entretanto, ao investigar as próprias memórias, Bill fica com um nó na garganta e começa a perceber que nem tudo era o que parecia ser.

A história de Pequenas Coisas Como Estas faz um recorte específico de um tipo de situação que se manifesta das mais diversas formas: as instituições e pessoas que acolhem crianças e adolescentes vulneráveis mas que não oferecem uma situação realmente segura para eles. Ao invés de serem protegidos e orientados, esses jovens acabam ficando à mercê de abusos psicológicos, físicos e sexuais vindos de pessoas com alto grau de autoridade sobre eles.

Histórias como essas já foram mostradas em filmes como Spotlight: Segredos Revelados, que aborda o tema dos abusos sexuais cometidos por padres nos EUA, e 7 Prisioneiros, que mostra jovens pobres se tornando vítimas do trabalho análogo à escravidão em São Paulo. Os abusos cometidos sob a supervisão da Igreja Católica também foram o centro de uma das subtramas da série 1923, lidando com o tema dos internatos para crianças e adolescentes indígenas que existiam nos EUA e no Canadá.

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Já a chocante minissérie Colônia Dignidade mostra como crianças e adolescentes chilenos eram deixados pelos pais em uma instituição liderada por um proeminente pedófilo. A natureza religiosa da Colônia fazia com que os pais ficassem tranquilos em relação à segurança dos filhos, partindo do pressuposto de que nada de mal poderia acontecer com eles em uma “casa de Deus”.

Esse raciocínio também era comum na fervorosamente católica sociedade irlandesa. No país, a Igreja Católica já está desde os anos 1980 recebendo e respondendo a inúmeras denúncias de abusos cometidos em seus estabelecimentos. Além dos abusos sexuais e do trabalho escravo, também foram descobertas várias fossas comuns cheias de ossadas de crianças, já que os internatos possuíam uma altíssima taxa de mortalidade infantil. Esses assuntos e os traumas causados por eles já foram tratados em filmes irlandeses como Em Nome de Deus e Calvário.

O que Pequenas Coisas Como Estas realça é o custo pessoal de ir contra o senso comum e contra o poder de uma influente instituição religiosa local, liderada pela manipuladora Irmã Mary (Emily Watson). Ao longo da trama, Bill percebe que, em sua infância, ele era puro e inocente demais para entender o que estava acontecendo com ele e com as pessoas ao seu redor. O que ele precisava é que alguém interviesse naquela situação e colocasse ele e sua mãe em um lugar realmente seguro.

É isso o que ele pensa em fazer por uma das garotas que encontra no convento local. Porém, essa intervenção pode lhe custar não apenas o seu ganha-pão, mas também o futuro de suas cinco filhas. A pressão não vem apenas do convento, mas também dos cidadãos que dependem economicamente da igreja ou que sempre ficam do lado dos “representantes de Deus na Terra”. Assim, o dilema de Bill também existe em uma escala quase civilizacional, com sociedades inteiras dependentes de instituições religiosas que nem sempre representam forças benéficas no mundo.

Com uma poderosa e marcante atuação de Cillian Murphy, Pequenas Coisas Como Estas pode não ser tão grandioso e climático quanto o público gostaria. Porém, a trama transmite a melancolia e a desesperança daquela situação de forma revoltante e angustiantemente real. O filme termina com um fio de esperança, ao contrário de muitas das vidas das crianças e adolescentes que foram abandonadas nessas instituições por suas próprias famílias e pela sociedade em geral.

Assistido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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