Crítica: Os Enforcados
Os Enforcados, Brasil/Portugal, 2024
Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes
★★★★☆
Na melhor tradição de filmes como Fargo e Killer Joe, a trama de Os Enforcados explora o caos e a imprevisibilidade que se instauram quando as pessoas recorrem à violência para resolver seus problemas. Mais que isso, o filme se diferencia ao caprichar no tempero brasileiro da narrativa, que se passa no Rio de Janeiro em meio a contraventores, carnavalescos e milicianos. O humor negro é afiadíssimo e a realidade é impiedosa nesse thriller autenticamente tupiniquim.
Desde a cena inicial de Os Enforcados fica claro que Regina (Leandra Leal) e Valério (Irandhir Santos) estão lidando com a ilusão de que podem controlar a violência. Porém, essa ilusão vai longe demais quando o casal resolve assassinar o tio contraventor de Valério, Linduarte (Stepan Nercessian). A ideia é que o desaparecimento do tio, que possui muitos inimigos, possibilitaria a passagem de seu “império” para o sobrinho e resolveria os problemas financeiros com os quais o casal está lidando.
Valério já trabalha com o tio na lavagem de dinheiro proveniente do jogo do bicho e das máquinas de caça-niqueis, mas os negócios não estão indo tão bem quanto ele gostaria. As más notícias são dadas para Regina enquanto ela planeja uma nova e estilosa cozinha para a mansão habitada por eles. Esse é o primeiro momento no qual, enquanto está inconformada, Regina verbaliza a ideia de cometer um “justo” assassinato para resolver a situação.
É aí que Os Enforcados começa a ir mais fundo na mentalidade que está sob análise no filme. Regina acredita que eles vão cometer um assassinato, ninguém nunca vai descobrir e eles vão ficar com todo o dinheiro do falecido. É um plano ingênuo, que ignora uma quantidade absurda de variáveis e que sempre vemos no noticiário (exemplos aqui, aqui, aqui e aqui).
Ao contrário do magnata que está no centro do filme A Negociação, Valério e Regina não são inteligentes o suficiente e não possuem os recursos necessários para saírem ilesos, além de estarem em um ambiente muito mais hostil do que o mundo de Wall Street.
O que eles não entendem é que essa não é uma situação controlada; não existem regras estabelecidas e nada é sagrado. Quando a polícia ou os criminosos rivais começam a alcançá-los, Regina parece ficar surpresa com o fato de que a realidade não está correspondendo às suas fantasias. É daí também que resulta boa parte do humor do filme. As reações de alguns personagens são tão comicamente absurdas quanto genuinamente realistas.
A trama de Os Enforcados também explora um pouco das origens da mentalidade de Regina, especialmente por meio da influência de sua mãe (Irene Ravache). Cartomante, a mãe de Regina é uma personagem que está sempre tentando obter uma vantagem financeira diante de qualquer situação, sempre da forma mais antiética (ou criminosa) possível. Além de um exagerado narcisismo, isso também revela a distorcida moral sob a qual algumas pessoas operam, na qual o jeito considerado “certo” é o jeito inerentemente corrupto e antiético.
Para ela, a única coisa errada que a filha pode fazer é não se beneficiar financeiramente da situação na qual eles estão. Esses benefícios são difíceis de serem alcançados, já que o crime inicial não tem os resultados que o casal gostaria e os deixa em situações cada vez mais apertadas. Mesmo quando as pressões externas dão uma aliviada, eles ainda precisam lidar com o medo de serem pegos e com a paranoia. No mundo do crime e em um momento como esse, em quem realmente cada um deles pode confiar?
Com uma trilha sonora impecável, uma cinematografia primorosa e diversas cenas marcantes, Os Enforcados é um dos raros filmes que realmente conseguem tirar proveito da realidade brasileira para prover uma obra tão pulp quanto fiel ao mundo representado. Se a trama se alonga por um pouco mais do que o ideal é para colocar os personagens centrais em uma posição que resulta em um desfecho tão irônico quanto icônico.
No final, Regina consegue a sua cozinha dos sonhos, mas os custos são avassaladores.
Assistido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo