Crítica: Os Banshees de Inisherin
The Banshees of Inisherin, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2022
Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
Com Os Banshees de Inisherin, o diretor Martin McDonagh atinge níveis de melancolia inéditos em sua cinematografia. Mesmo Três Anúncios Para um Crime, sua mais “pesada” comédia de humor negro, tem um final relativamente otimista para seus protagonistas. Dessa vez, os temas tratados parecem ser bem mais leves e genuinamente engraçados, mas a fragilidade e a escuridão da natureza humana rapidamente sobem à superfície e ajudam a revelar a trágica natureza da “guerra civil” entre dois amigos.
Em sua primeira camada, Os Banshees de Inisherin é um filme sobre a situação criada por Colm (Brendan Gleeson) ao simplesmente se recusar a socializar com seu amigo de longa data Pádraic (Colin Farrell). Moradores da pequena ilha irlandesa de Inisherin nos anos 1920, os dois homens lidam com a situação das formas mais imaturas e rudimentares possíveis. Enquanto Colm chega ao extremo de ameaçar cortar os próprios dedos se o amigo insistir em falar com ele, Pádraic exige não apenas explicações mas também a imediata reversão daquela atitude aparentemente ilógica.
Mas Colm apresenta uma lógica para justificar sua decisão: ao invés de passar horas a fio jogando conversa fora com o amigo, como fez ao longo de muitos anos, ele decide que irá se dedicar a sua música e tentará deixar um legado para a posteridade. O desalento no qual ele se encontra é causado pelo medo de ser esquecido. Ele não quer que sua passagem pela Terra deixe como marca apenas um pequeno túmulo em algum canto de uma pequena ilha irlandesa. Assim como outros antes dele, ele quer realizar algo que ecoe pela eternidade.
Por outro lado, Pádraic pensa apenas nos bons momentos que está vivendo no dia a dia, se entretendo com a cerveja e com a companhia do amigo. O fim da amizade trás a tona todas as inseguranças que ele nem sabia que tinha: o medo de ser abandonado, o medo de não ser respeitado, o medo da solidão. A atitude de Colm remove boa parte do alicerce de sua existência, deixando-lhe confuso e ainda mais dependente da companhia de sua irmã Siobhán (Kerry Condon), do imaturo Dominic (Barry Keoghan) e de sua jumentinha Jenny.
Siobhán e Dominic também nos lembram dessas angústias da condição humana, já que ambos sofrem com o medo do isolamento e da desconexão com o mundo ao seu redor. Enquanto ela claramente está acima do nível intelectual do restante dos habitantes da ilha, Dominic é considerado o “idiota da vila” devido ao seu comportamento grosseiro e inapropriado.
Uma vez que Dominic sofre diversos tipos de violência de seu pai e não possui uma forte referência de comportamento positivo (nesse sentido, a maior referência que ele tem é Pádraic, que está passando por um momento nada inspirador), a tendência é que sua inadequada inocência resulte em atitudes cada vez mais tóxicas tanto para ele quanto as pessoas ao seu redor.
A ótima atuação de Keoghan ajuda a realçar toda a inadequação de um jovem que, apesar de necessitar de atenção e conexão como qualquer outro ser humano, é incapaz de navegar as convenções sociais e de levar em conta os sentimentos das outras pessoas.
Obviamente, nenhum dos protagonistas de Os Banshees de Inisherin precisava ser tão radical em suas abordagens. Colm poderia ter apenas estabelecido alguns limites, garantindo que teria seus momentos de solitude para focar em sua produção artística. Já Pádraic poderia ter respeitado a decisão do amigo, por mais abrupta e ilógica que ela fosse, ao invés de insistir em um relacionamento do qual a outra parte não quer fazer parte.
Porém, a situação escala até o ponto no qual danos irreversíveis são feitos pelos dois lados, dando origem a uma inimizade que provavelmente durará até o fim de suas vidas. E é por isso que Os Banshees de Inisherin serve como uma ótima metáfora para a Guerra Civil Irlandesa, conflito que em alguns momentos marca o pano de fundo da trama.
Em 1921, em meio a um impasse, a Guerra de Independência da Irlanda chegou a um cessar-fogo e o Reino Unido ofereceu um tratado que garantia a total independência do país, apesar de exigir que a nova nação mantivesse laços com a Comunidade Britânica de Países. Dentre os irlandeses, o lado governista via o documento como um significativo avanço, com concessões estratégicas que permitiriam o estabelecimento da paz e ainda mais progressos no futuro.
Porém, parte da oposição e as facções mais radicais consideraram o tratado inaceitável, pois, assim como outros membros da Comunidade Britânica (por exemplo, Canadá e Austrália), o país teria que jurar uma simbólica lealdade à monarquia do Reino Unido.
O resultado dessa “simbólica” discordância foi uma sanguinária guerra civil que levou os compatriotas a se tratarem como completos inimigos. Para se ter uma ideia, estima-se que mais pessoas morreram durante a guerra civil do que durante a guerra de independência. Em outras palavras, depois de conquistar a independência da nação, os irlandeses lutaram violentamente entre si para decidirem se iriam ou não continuar “amigos” do Reino Unido! Essa divisão foi tão marcante que até hoje tem influência na polarização da política irlandesa.
O lado governista venceu a guerra civil e o país independente, chamado de Estado Livre da Irlanda, passou a fazer parte da Comunidade Britânica. Sem recorrer a conflitos armados ou execuções sumárias, o lado derrotado se reorganizou politicamente e conseguiu ir revertendo os elementos dos quais não gostava no tratado. Finalmente, em 1948 os irlandeses saíram da Comunidade e renomearam o país como República da Irlanda.
Como comédia de humor negro, Os Banshees de Inisherin diverte com piadas simples e prosaicas. Como drama, o filme emociona ao evidenciar fragilidades humanas universais, que sempre nos acompanharam em qualquer ponto do tempo e do espaço. Como tragédia, a trama mostra como os protagonistas destroem a si próprios na tentativa de lidarem com seus medos e inseguranças.
O simples fazendeiro que queria apenas continuar tomando cervejas com seu amigo se torna uma pessoa amarga e vingativa. Já o artista que queria ser lembrado depois de sua morte deixa como legado uma história de intransigência e estupidez.