Crítica: Oppenheimer

Oppenheimer, EUA/Reino Unido, 2023



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★★★★★


Oppenheimer é antes de mais nada um filme composto de sobreposições. Para falar sobre a vida e a obra de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), o diretor Christopher Nolan entende – corretamente – que também precisa falar sobre política, geopolítica, ideologia, espionagem, ciência, saúde mental, engenharia e paranoia. O resultado é um retrato quase completo não apenas de um homem, mas também de um determinado momento da História, além de também servir como uma assombrosa fotografia da humanidade.

oppenheimer 1Em primeiro lugar, a montagem de Oppenheimer sobrepõe o passado e o futuro de seu protagonista. O espectador pode ver Oppenheimer como um estudante em depressão na Europa, como um aclamado cientista sob investigação, como um inepto pai de família, como um operador político no pós-guerra, como o patriota diretor do Projeto Manhattan no deserto do Novo México, como um idealista professor universitário na Califórnia e como um amante e conquistador em festas e em quartos de hotel.

Esse desordenado retrato é então sobreposto com o contexto e com as consequências do desenvolvimento da primeira arma nuclear da História da humanidade. As imagens compostas por Nolan nos lembram que antes de arder sobre a superfície do nosso planeta, a chama atômica ardeu nas imaginações de Oppenheimer e de muitos outros cientistas ao redor do mundo. O filme nos mostra então como essas visões foram materializadas e começaram a moldar o futuro da humanidade.

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Tão importante quanto o Oppenheimer que vemos no primeiro plano são as forças humanas, acadêmicas e políticas que compõem a “paisagem” que o molda. Dentre elas, se destacam as duas principais mulheres em sua vida, Jean Tatlock (Florence Pugh) e Kitty Oppenheimer (Emily Blunt), e seus associados no Projeto Manhattan, como o tenente-general Leslie Groves (Matt Damon) e os cientistas Ernest Lawrence (Josh Hartnett) e Edward Teller (Benny Safdie).

Parte da narrativa de Oppenheimer é contada sob o ponto de vista de Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), o que é uma escolha muito interessante feita por Nolan. Isso não apenas dá a Robert Downey Jr. a oportunidade de brilhar em um dos melhores papéis de sua carreira, mas também dá a Nolan a oportunidade de guardar alguns plot twists para o ato final da projeção.

Uma outra surpresa que a trama nos revela é a força e a importância de Kitty Oppenheimer na vida do protagonista, sendo uma pessoa tão complicada e, à seu próprio modo, tão genial quanto ele. Seu inconformismo é uma das grandes forças que Nolan coloca na tela e que ajudam o espectador a ter uma melhor dimensão da força e do inconformismo do próprio Oppenheimer. Talvez o filme seria ainda mais energético se parte da trama fosse narrada sob o ponto de vista de Kitty.

oppenheimer 2Quando aborda o desenvolvimento da primeira bomba atômica da História, além de sobrepor as excêntricas personalidades dos lendários cientistas envolvidos, Oppenheimer também sobrepõe a forma de trabalhar dos acadêmicos com a rigidez e os protocolos de segurança dos chefes militares.

Enquanto os cientistas estão acostumados a trabalhar compartilhando o máximo possível de conhecimento, os militares tentam manter o desenvolvimento da nova arma o mais compartimentalizado possível, de forma que cada membro do projeto saiba estritamente apenas o que ele precisa saber. O objetivo disso é minimizar o estrago caso algum desses cientistas permita ou realize o vazamento de informações.

Porém, em um projeto de ciência e engenharia tão complexo e pioneiro não há como saber de antemão quem precisa saber exatamente o que para que o trabalho seja concluído. O esforço necessário para manter tamanho nível de compartimentalização poderia atrasar o projeto não apenas em meses, mas talvez em anos. Diante da urgência da situação, um fluxo livre de informações é o único meio viável da equipe trabalhar de forma realmente colaborativa.

Isso, é claro, tem seu lado negativo. Enquanto Oppenheimer se mantém negligentemente otimista em relação à confiabilidade de seus colegas de profissão, a paranoia dos militares em tempos de guerra se prova justificada. Os vazamentos de detalhes do projeto para os soviéticos seriam descobertos anos depois e seriam utilizados contra Oppenheimer, a ponto de levantarem a suspeita de ele mesmo ser o traidor.

Nesse ponto, o filme nos lembra que Oppenheimer pode ser considerado uma das vítimas da segunda ameaça vermelha nos EUA, que foi um dos períodos no qual o medo do comunismo levou as autoridades do país a perseguir pessoas que defendiam (ou foram acusadas de defender) ideias de esquerda. Devido a sua associação com sindicatos e com membros do Partido Comunista dos EUA, ele era um alvo fácil para essa perseguição.

Esse lado político é outra camada que o filme sobrepõe na composição de Oppenheimer. O genial e respeitado cientista, que introduziu a física quântica no ambiente acadêmico dos EUA, só passou a ser levado em conta para participar do desenvolvimento da bomba atômica depois que cessou seu envolvimento com atividades sindicalistas. Mas a trama também sugere que talvez ele foi escolhido justamente por isso, já que essas associações com a esquerda o tornavam fácil de controlar (ou reprimir) caso os militares precisassem.

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É apenas quando o projeto inicial é finalizado que Oppenheimer entende que tudo o que ele e os outros cientistas fizeram foi construir uma ferramenta. Ficou a cargo então dos políticos e dos militares decidirem como ela seria utilizada. O único problema é que essa é uma “ferramenta” que pode ser utilizada para destruir a própria humanidade.

Isso nos leva a uma das principais camadas sobrepostas em Oppenheimer: o terror. O angustiante clima de terror que permeia cada momento da projeção é causado tanto pelas motivações para se construir a bomba, já que os nazistas estavam indo na mesma direção, quanto nas consequências de sua construção. Mais que isso, o raciocínio (ou a racionalização) utilizado pelas autoridades dos EUA para justificar os ataques atômicos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki são de uma frieza e crueldade perturbadoras.

Oppenheimer faz o possível para se manter agarrado a um prognóstico otimista, pressupondo que o desenvolvimento das armas nucleares iriam dar origem a um inédito período de paz na humanidade, já que os Estados nacionais passariam a evitar as guerras a qualquer custo. Porém, a realidade é que tem início uma corrida armamentista que leva as grandes potências mundiais a construírem um arsenal nuclear suficiente para destruir as atuais civilizações humanas diversas vezes. Durante a Guerra Fria, esse era um dos principais medos da humanidade.

Esse terror existencial já havia sido explorado na minissérie Chernobyl, que mostra como seres humanos tomando decisões absurdamente irresponsáveis com uma usina nuclear quase tornaram uma boa parte do globo terrestre inabitável. O advento do controle desse tipo de energia pelos seres humanos também levou à criação do Relógio do Juízo Final, um marcador simbólico que indica o quão próximo nós provavelmente estamos de um apocalipse nuclear.

Para representar esse terror, Nolan conta com uma atuação fenomenal de Cillian Murphy, que transmite a mais pura angustia por meio de olhares e expressões faciais. Com a ajuda de outras atuações geniais, de uma sempre impactante trilha sonora e de várias outras artimanhas da linguagem cinematográfica, o cineasta também consegue criar suspense e prender a atenção do espectador por quase três horas de diálogos. Mesmo quando o filme se estende um pouco mais do que o ideal, o diretor ainda tem algumas surpresas e algumas revelações para fazer até os últimos minutos.

Oppenheimer não é uma homenagem ou um filme sobre a grandiosidade de um homem. A trama é antes de mais nada uma tragédia, já que o protagonista tem sua vida e sua psique absurdamente abaladas pelas potenciais consequências de seu trabalho. A tragédia também está no fato de que ele morreu sabendo que possivelmente ajudou a viabilizar a extinção da humanidade, colocando uma “arma carregada” nas mãos de uma civilização que muitas vezes não pensa nas consequências dos próprios atos.

Dessa forma, o filme não trata apenas da tragédia de um homem, mas também da potencial tragédia de uma espécie. Não há aqui grandes heróis ou grandes vilões, mas apenas seres humanos seguindo seus instintos mais básicos e tateando no escuro enquanto ignoram o abismo adiante.