Crítica: O Rei

The King, Austrália/EUA, 2019



Com mais intriga política do que batalhas medievais, O Rei se destaca graças a ótimas atuações e a relevância de sua mensagem

★★★★☆


O diretor David Michôd imprime sua própria marca em mais essa adaptação da peça shakespeariana Henrique V. Os temas políticos da peça se juntam aos temas que o diretor já abordou em filmes como Reino Animal, The Rover: A Caçada (crítica aqui) e Máquina de Guerra (sátira política que também é uma produção original do Netflix), resultando em um poderoso thriller político sobre o exercício do poder, envolvendo negociações, diplomacia, táticas de guerra e laços de família.

the king1

Uma vez que a Inglaterra de O Rei ainda é uma monarquia absolutista, muitos dos aspectos políticos da história já não se aplicam à maioria dos governos modernos. Filmes e séries com temas medievais podem levar parte dos espectadores a analisar o atual cenário político do mundo através do prisma simplista do absolutismo. Não é à toa que muitas pessoas ainda enxerguem presidentes e primeiros-ministros como se fossem reis ou rainhas, ignorando a separação de poderes e o papel dos sistemas bicamerais.

De autoria do próprio Michôd em parceria com Joel Edgerton, o roteiro de O Rei evita esse tipo de armadilha ao focar na gigantesca responsabilidade que recai sobre os ombros do protagonista Hal (Timothée Chalamet), o Rei Henrique V da Inglaterra. Depois que sucede o paranoico e belicoso Henrique IV (Ben Mendelsohn), ele rapidamente percebe a gravidade das decisões e atitudes tomadas por um mandatário nacional.

Esse é um dos poucos aspectos que ainda valem para os dias de hoje: além da economia e da infraestrutura do país, um líder também precisa gerenciar a imagem projetada pelo seu governo. Essa é uma necessidade primitiva se comparada com as necessidades dos estados democráticos, nos quais muitos interesses (às vezes, divergentes) precisam ser levados em conta de forma equilibrada e sofisticada. Nas democracias (diferente, por exemplo, das oligarquias), os interesses de todos os grupos que compõem a nação precisam ser levados em conta.

Esse é um dos motivos pelos quais o poder não deve ser exercido por uma única pessoa. Em O Rei, Hal percebe que junto com o poder monárquico vem a solidão do trono. Por mais que tenha conselheiros e seguidores, nenhum outro homem compartilha sua responsabilidade. Isso não seria um problema se, assim como seu pai, ele não se importasse com os efeitos colaterais e as consequências de longo prazo de suas decisões. Porém, Hal tenta ser um dignitário sério e zeloso com o povo e com a União.

the king 2Todas essas questões políticas são abordadas de forma simples, direta e eloquente, tornando o filme uma básica introdução à ciência política. Mesmo a guerra é abordada mais em sua dimensão política do que em termos de patriotismo ou glória. As batalhas são quase anti-climáticas e dificilmente podem ser chamadas de grandiosas. O único aspecto de O Rei que pode ser considerado “épico” é a trajetória de Hal, que de príncipe fanfarrão evolui até se tornar um dos maiores monarcas da História da Inglaterra.

Porém, vale lembrar que essa é uma versão fictícia do rei guerreiro Henrique V. O filme se baseia na ficção histórica de Shakespeare, que, por sua vez, se baseia não apenas na História mas também na lenda de Henrique V. Ele alcançou esse status graças a suas vitórias militares, especialmente a que é representada na peça e no filme, a Batalha de Agincourt. Enquanto o filme mostra rapidamente o momento no qual Hal ordena a execução de todos os prisioneiros de guerra, na vida real ele também ameaçou executar qualquer um que se recusasse a seguir essas ordens (inicialmente, os cavaleiros se opuseram devido ao código de honra da cavalaria medieval ou pela possibilidade de trocar os prisioneiros por resgates pagos pelos familiares).

O ator Timothée Chalamet compensa seu físico franzino com uma atuação poderosa e impecável, o que faz com que o espectador jamais duvide de sua força e determinação. Já o impressionante elenco de apoio, composto por nomes como Sean Harris, Joel Edgerton, Ben Mendelsohn e Robert Pattinson, dá um show à parte e faz valer à pena os 140 minutos de duração do filme.

O Rei pode não ser indicado para quem está mais interessado em ação e batalhas épicas, mas é um grande exemplo de drama e thriller político. Mais do que o aspecto histórico, o grande atrativo da produção é o arco dramático de seu protagonista, representado de forma excelente tanto por seu intérprete quanto pela combinação de roteiro e direção.