Crítica: O Milagre
The Wonder, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2022
Netflix · Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★☆
Na longa lista de histórias sobre histórias, O Milagre se destaca graças a uma narrativa direta e simples, além de uma incrível ambientação e de mais uma memorável performance de Florence Pugh. Esses dois últimos aspectos fazem com que a produção nos lembre de Lady Macbeth, que também é estrelado por Pugh e possui locações, cinematografia e figurinos muito semelhantes. A grande diferença entre os dois filmes é que em O Milagre a protagonista consegue resolver o problema central de uma forma bem menos violenta.
A enfermeira inglesa Lib Wright (Pugh) fica desde o início cética sobre o caso que ela foi enviada para acompanhar: a garota irlandesa Anna (Kíla Lord Cassidy) se mostra perfeitamente saudável mesmo depois de passar os últimos quatro meses sem se alimentar. Considerada um “milagre” por sua família e pelas autoridades, Anna passa a ser acompanhada 24h por dia por Lib e por uma freira, a irmã Michael (Josie Walker), que devem informar ao conselho local se elas viram a garota se alimentando em algum momento.
O problema é que a família da garota e a maior parte do conselho querem que a história seja verdade. Diante de um acontecimento aparentemente inexplicável, as pessoas preferem acreditar nas explicações que confirmem seus pontos de vista, por mais fantásticas e improváveis que elas sejam. De certa forma, o mesmo vale para Lib, já que ela parte do pressuposto de que a história é falsa e que a garota deve estar se alimentando de alguma maneira. A diferença é que Lib está interessada em investigar os fatos e as evidências com um olhar mais analítico e racional, ao invés de se satisfazer com a falta de detalhes sobre a situação.
Enquanto o padre Thaddeus (Ciarán Hinds) e o senhorio John Flynn (Brían F. O’Byrne) acreditam que estão diante do surgimento de uma nova santa conforme a tradição da Igreja Católica, o médico local, doutor McBrearty (Toby Jones), prefere acreditar que ele está diante de uma grande descoberta científica. Para todos eles, é importante que a história seja verdadeira, pois isso os tornaria testemunhas oculares e descobridores de um evento que ficaria marcado na História da humanidade. Lib, por outro lado, está interessada em uma explicação mais simples e racional para a situação.
Segundo a psicologia evolucionista, a tendência humana de criar explicações fantásticas para os acontecimentos nos ajudou a sobreviver em épocas nas quais a maioria dos fenômenos naturais eram inexplicáveis. Narrativas incríveis foram criadas, dando origem às religiões e à fé humana. A compreensão que cada um de nós tem sobre o mundo e sobre nós mesmos depende das histórias nas quais nós acreditamos. Porém, essa tendência também tem seus efeitos colaterais, resultando em fenômenos sociais cada vez mais preocupantes.
Um exemplo disso é como parte da população humana resolveu não acreditar na gravidade da pandemia de COVID-19, preferindo explicações e teorias da conspiração que estavam mais próximas de suas crenças pré-existentes e que as ajudavam a controlar o medo e a ansiedade causados pela crise global. Obviamente, nossas crenças não representam apenas uma questão de fé, mas também uma questão de ideologia.
Em O Milagre, a situação de Anna é causada por uma série de histórias que a família cria para racionalizar determinados eventos. Ao invés de lidar com a realidade da situação, os pais Rosaleen (Elaine Cassidy) e Malachy (Caolan Byrne) criam narrativas que dão explicações divinas para os acontecimentos e os ajudam a processar os próprios sentimentos e ressentimentos. Quem também participa dessa narrativa é Kitty, interpretada por Niamh Algar, que também serve como narradora do filme.
Essa não é a primeira vez que Algar participa desse tipo de história. No filme Censor, ela interpreta uma censora de filmes que acaba se envolvendo pessoalmente com a história de uma das produções que ela precisa analisar. Algar também em está em Raised by Wolves, série de ficção científica que tenta destrinchar a relação da humanidade com a crença religiosa. Nos dois casos, as vidas de suas personagens são irreversivelmente alteradas depois que elas passam a acreditar em (ou, pelo menos, aceitar) determinadas narrativas.
O papel das histórias na experiência humana também é discutido na série Sandman. Em um de seus episódios, o Senhor dos Sonhos precisa lidar com um homem que retirou da humanidade a capacidade de mentir, o que também extingue nossa capacidade de sonhar e de acreditar nas histórias que nos ajudam a lidar com as coisas da vida.
Depois de desvendar o mistério de O Milagre, Lib resolve a situação de uma forma bem apropriada: contando algumas histórias, tanto para Anna quanto para as autoridades. Diante de uma comunidade que se recusa a considerar os fatos e as explicações mais racionais, ela resolve criar uma narrativa que resulta em uma solução mais aceitável, na qual ninguém terá suas crenças questionadas e todos poderão continuar acreditando no que querem acreditar.
Com uma narrativa intrigante e uma atuação central cativante, O Milagre é muito bem-sucedido em sua missão: contar uma história sobre a nossa crença em histórias. E a trama faz isso enquanto nos lembra de que esse filme também é uma história e que o espectador também está envolvido na “névoa” de uma narrativa. Ao nos mostrar os bastidores da produção, o filme revela que está tentando nos mostrar os bastidores das nossas crenças e das histórias nas quais acreditamos.