Crítica: O Lodo

O Lodo, Brasil, 2020



Filme faz um inquietante passeio pela psique de uma pessoa inquieta

★★★☆☆


Divertido e insólito, O Lodo conduz o espectador pelo pesadelo magicamente real de Manfredo (Eduardo Moreira), um trabalhador de escritório que se recusa a fazer terapia. Aqui, elementos de realismo fantástico são utilizados para se realçar a absurdez de um tratamento terapêutico sob o ponto de vista do protagonista. O filme, que é baseado em um conto de Murilo Rubião, satiriza a (muitas vezes irritante e repetitiva) pressão social que se coloca para as pessoas fazerem terapia (que, todo mundo sabe, é um processo que leva tempo).

Afinal, tudo o que Manfredo queria era que o Dr. Pink (Renato Parara) lhe receitasse algo para melhorar um certo desânimo que lhe afetava há alguns dias. Porém, de repente, aquele homem que ele nunca havia visto na vida começa a exigir (eu gostaria de saber um pouco da sua infância) que ele lhe conte suas memórias e seus segredos mais íntimos. E quando ele se recusa, tanto o médico quanto algumas outras pessoas insistem para que Manfredo continue o tratamento que ele não está interessado em continuar (entenda, é para o seu próprio bem).

De certa forma, Manfredo é assombrado não apenas pela necessidade de trazer à tona o “lodaçal” ao qual o doutor se refere, mas também pela obrigação de desenterrar antigas memórias e reprocessar as culpas e traumas que tiveram importantes papéis na formação de sua personalidade. Para manter sua identidade, Manfredo recorreu à negação e exilou certos acontecimentos para as mais escuras profundezas de sua psique, e agora várias pessoas exigem que ele os resgatem (é preciso ir fundo, senhor Manfredo).

Como se não bastasse ligar-lhe em todos os telefones possíveis (celular, residencial e profissional), o Dr. Pink chega a ponto de segui-lo na rua (o que o senhor tem é grave) e invadir seus sonhos, fazendo neles intervenções cirúrgicas que se manifestam fisicamente quando Manfredo acorda. E Manfredo segue tentando viver a vida até que as manifestações tanto da necessidade quanto da exigência de um tratamento psicológico vão ficando cada vez mais físicas (eu posso ajudá-lo, senhor Manfredo).

A linguagem quase teatral de O Lodo colabora para o clima de realidade surreal que permeia a trama. Esse clima é realçado pelo uso de cenas corriqueiras do centro de Belo Horizonte, contrastando a sóbria realidade urbana com a absurda comédia que se tornou a vida do protagonista. A narrativa se completa com a ajuda de flashbacks incrementais de um momento chave do passado e com visões do consultório do Dr. Pink, local que Manfredo passa a maior parte do filme tentando evitar (há algo no seu interior que precisa ser revelado).

Quando Manfredo finalmente se entrega, o espectador já tem uma boa ideia do lodaçal que ele tentava esconder. As revelações feitas ao longo da projeção são bem sutis e algumas identidades jamais são explicitamente confirmadas, mas todas as peças do quebra-cabeça são fornecidas para quem estiver interessado em montá-lo. O foco de O Lodo não está nas questões com as quais Manfredo precisa lidar, mas sim em sua insistente resistência em encarar a complexa e inquietante realidade de seu passado, que insiste em invadir o seu presente (nada fica enterrado para sempre; um dia, tudo volta).

* Assistido online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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