Crítica: Nem Um Passo em Falso
No Sudden Move, EUA, 2021
Filme é um ótimo neo-noir a la Soderbergh, ainda que não esteja dentre os melhores e não seja para todos os gostos
★★★☆☆
Dentre os muitos estilos do diretor Steven Soderbergh, Nem Um Passo Em Falso se encaixa na categoria de neo-noir no mundo do crime. Para quem curte o estilo, o filme pode ser considerado mais uma pequena joia do cineasta. Para quem está mais interessado em outro tipo de Soderbergh, como o da franquia Onze Homens e Um Segredo, esse lançamento da HBO Max pode ser decepcionante. A “diversão” aqui está em uma história relativamente simples contada de forma estilosa e cheia de reviravoltas, até finalmente chegar nos temas específicos que o diretor quer abordar.
Lidando com algumas das questões econômicas e raciais da Detroit de 1954, os primeiros quarenta minutos se desenvolvem de forma relativamente lenta, o que pode ser desafiador para o espectador que precisa de alguma “energia” ainda no início. Porém, depois da primeira reviravolta, as dúvidas que os protagonistas Curt Goynes (Don Cheadle) e Ronald Russo (Benicio Del Toro) tinham no primeiro ato se transformam em um autêntico mistério. Para quem o homem que os contratou, Doug Jones (Brendan Fraser), está trabalhando? Qual o conteúdo do documento que eles obrigaram o pai de família Matt Wertz (David Harbour) a roubar do próprio chefe? Qual é o envolvimento dos gangsters Frank Capelli (Ray Liotta) e Aldrick Watkins (Bill Duke)?
Quando o último ato finalmente chega, todas essas perguntas já estão respondidas e todos os participantes já deram as caras. Tudo o que resta é um complexo jogo de alianças e traições no qual não é possível dizer quem ficará por cima quando tudo acabar. O que se pode dizer é que a resposta para essa pergunta é o tema central de Nem Um Passo Em Falso, pois a única pessoa que realmente fica por cima é justamente o tipo de pessoa que sempre fica por cima, independente do jogo que os peões estão jogando no tabuleiro. Para mais detalhes, veja na próxima sessão os Comentários com SPOILERS.
Dentre os filmes mais recentes do diretor, esse é o que mais se aproxima de seu Irresistível Paixão, joia dos anos 1990 estrelada por George Clooney e Jennifer Lopez, e que tinha Cheadle como o vilão. Mas Nem Um Passo Em Falso não tem nem o charme nem a leveza daquela produção, ou de um outro Soderbergh mais recente, a comédia Logan Lucky: Roubo em Família. Aqui, há uma abordagem mais direta e seca, no estilo de Terapia de Risco ou Contágio, misturada com as traições e reviravoltas de A Toda Prova.
No geral, Nem Um Passo Em Falso é acima de tudo uma história muito bem contada, apesar de não ser nem grandiosa e nem muito memorável. A coerência dentre os muitos elementos da trama é mantida graças a um roteiro afiado e a uma direção segura, além das ótimas performances de um elenco que também inclui nomes como Jon Hamm, Noah Jupe e Kieran Culkin. Enquanto Del Toro mantém sua marcante presença de tela, Cheadle dá um show à parte, lembrando suas qualidades como protagonista, que aparecem mais frequentemente na ótima série Black Monday.
Comentários com SPOILERS (e final explicado)
Como outros filmes de Soderbergh, Nem Um Passo Em Falso faz um comentário sobre a natureza do capitalismo. Na produção, as idas e vindas de bandidos, homens de família e outros envolvidos pouco importam, pois no final as grandes corporações que estão por trás dos eventos não apenas conseguem atingir seus objetivos mas também obtêm um lucro não planejado. As grandes corporações da indústria automobilística dos EUA são representadas pela organização liderada por Mike Lowen (Matt Damon).
O documento que dá aos protagonistas algum poder de barganha não é nada mais do que o projeto de um conversor catalítico, peça que serve para diminuir a toxicidade da fumaça liberada por automóveis e que era uma novidade tecnológica na década de 1950. O objetivo de Lowen e das grandes corporações é evitar a qualquer custo que as autoridades fiquem sabendo que a peça já é tecnologicamente viável, o que resultaria em novas exigências na fabricação dos veículos, gerando um custo adicional. Ou seja, as empresas preferiram continuar colocando a saúde da população em risco para não aumentar os custos de produção.
E essa é uma conspiração da vida real. A chamada smog conspiracy se formou quando as quatro grandes montadoras dos EUA prometeram ao governo que iriam pesquisar formas de reduzir a toxicidade da fumaça dos exaustores, com o objetivo de diminuir os problemas de saúde causados pela poluição, especialmente na cidade de Los Angeles. Porém, o grupo fez esforços no sentido contrário, visando atrasar o emprego de novas tecnologias, levando-o a esconder os resultados positivos obtidos e a afirmar para as autoridades que seria caro demais diminuir a poluição.
Isso lembra outros casos famosos, como os esforços da indústria do petróleo contra o trabalho de Clair Patterson, cientista que alertou o mundo sobre os efeitos nocivos da adição de chumbo à gasolina. A indústria do petróleo também escondeu do público os resultados que ela obteve sobre o aquecimento global, minimizando publicamente a severidade do problema enquanto atuava internamente para adaptar suas operações às consequências do fenômeno, como a elevação do nível dos oceanos.
No filme, o funcionário da General Motors Matt Wertz oferece o documento para o concorrente Hugh Naismith (Kevin Scollin), que pretende comprá-lo para evitar um vazamento e aciona Lowen. Lowen, que representa o interesse de todas as montadoras, orienta o chefe de Wertz a esconder o documento para evitar o roubo. Porém, quando Wertz desiste de roubar o documento e vendê-lo, Naismith contrata o chefe do crime Frank Capelli para executar o roubo. Capelli, por sua vez, orienta Doug Jones a montar uma equipe para executar a ação, que é onde os protagonistas Goynes e Russo entram.
No final, Goynes e Russo conseguem negociar diretamente com Lowen, que paga 375 mil pelo documento. Watkins fica com os 125 mil que haviam sido levantados por Naismith, usando 50 mil para subornar o policial Joe Finney (Jon Hamm) e deixando apenas 5 mil com Goynes, que foi o valor pelo qual ele havia sido contratado por Jones.
Porém, Finney na verdade está a serviço de Lowen. Ele usa a polícia para recuperar os 375 mil, que vem junto com os 31 mil que Vanessa Capelli (Julia Fox) havia adicionado, e ainda repassa os 50 mil do suborno para o chefe, deixando Lowen com um total de 456 mil dólares. Mais do que nunca, a casa sempre ganha.