Crítica: Missa da Meia-Noite
Midnight Mass, EUA, 2021
Netflix · Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
É importante começar dizendo que quem não estiver interessado em longas reflexões sobre vida e morte, fé e ateísmo ou existência e identidade pode pular Missa da Meia-Noite tranquilamente. Apesar de ser apresentada como terror, a minissérie é muito mais um drama sobre as vidas dos moradores de uma pequena ilha e suas buscas por significado ou salvação. Porém, esse drama é invadido por elementos sobrenaturais que levam tanto a momentos de terror convencional quanto a momentos de terror existencial. No centro de tudo isso está a pequena igreja católica do local, que se torna algo completamente diferente.
Um dos pontos que chamam a atenção é que Missa da Meia-Noite é tão bem escrita e dirigida por Mike Flanagan que ele sequer precisava inserir elementos de terror. A ambientação e os personagens são tão bem desenvolvidos que esse poderia ser apenas um soturno drama sobre a vida e a passagem do tempo em uma pequena e isolada comunidade. Porém, a chegada do jovem padre Paul (Hamish Linklater) traz consigo milagres que alteram o dia a dia do local e reforçam significativamente a fé dos habitantes. Mesmo o ateu Riley Flynn (Zach Gilford), que acaba de sair da prisão e ainda carrega a culpa pelo crime que cometeu, se vê atraído pelo carisma e pela sabedoria do novo padre.
Além desses dois, quem também se envolve nas discussões filosóficas e sociais são Erin Greene (Kate Siegel) e o xerife Hassan (Rahul Kohli), que é membro da única família muçulmana do local. Quem não está tão interessada em discussões é Bev Keane (Samantha Sloyan), a principal funcionária da paróquia. Toda vez que alguém questiona suas ações, Bev está pronta para se justificar com versículos bíblicos e com a típica atitude de quem se considera mais correto e mais inteligente do que todas as pessoas ao seu redor.
Se esses são os cinco personagens mais marcantes de Missa da Meia-Noite, isso se deve sobretudo às fantásticas atuações de seus intérpretes. Dada a altíssima qualidade dos diálogos e monólogos que eles protagonizam, fica claro que os atores fizeram o máximo que podiam com o material. Dentre eles, Gilford se destaca por uma atuação que transmite a fragilidade do personagem não apenas em cada gesto e em cada olhar, mas também em seus pequenos e quase imperceptíveis trejeitos. Comentários equivalentes podem ser feitos tanto sobre os quatro já citados quanto sobre alguns outros membros do elenco.
Além de personagens muito bem caracterizados e escritos, a minissérie também tem ideias muito bem desenvolvidas. Nos episódios iniciais, essas ideias estão centradas no embate entre fé e ateísmo, ou na nossa necessidade de inventar explicações para as coisas que nós não conseguimos explicar. Há também a relação entre a fé e as dificuldades com as quais as pessoas precisam lidar em suas vidas, com a religião oferecendo um tipo de conforto que talvez nenhuma outra instituição ou pessoa possa oferecer. Porém, essas histórias que nós contamos para nós mesmos saem completamente de controle na segunda metade da produção.
Os eventos aparentemente milagrosos que chegam juntos com o padre Paul são imediatamente interpretados como atos de Deus. Como os habitantes da ilha não conseguem explicar aqueles acontecimentos com o conhecimento que possuem, eles vão direto para a conclusão de que há forças divinas atuando em prol da comunidade. Além disso, os “milagres” se encaixam perfeitamente na mitologia cristã, o que leva as pessoas a preferirem a explicação milagrosa e a não buscarem explicações mais racionais ou científicas para os acontecimentos. Eles partem do pressuposto de que se eles mesmos não conseguem explicar os eventos de forma racional, então ninguém mais será capaz de fazê-lo. Não é a toa que o famoso caso do médico Ignaz Semmelweis é mencionado em um dos episódios.
Toda essa certeza sobre os eventos milagrosos se transforma em fanatismo religioso nos episódios finais de Missa da Meia-Noite. Quando os “milagres” começam a apresentar aspectos claramente violentos e perturbadores (e característicos de um determinado tipo de história de terror), as pessoas continuam aplicando as explicações “divinas”. Ao invés de questionarem aqueles acontecimentos, elas continuam justificando-os como a vontade de Deus. Em determinado ponto, o padre Paul praticamente afirma que “os fins justificam os meios”:
O que seria horrível é bom por causa da direção em que vamos. Bem-vindos ao exército de Deus. Vamos fazer grandes obras.
O que a história tenta mostrar é a facilidade com a qual o discurso religioso pode ser manipulado para se atingir outros propósitos. Como acreditam que estão agindo em nome do Senhor, os fanáticos perdem a perspectiva do certo e do errado, e sempre dão um jeito de justificar os próprios atos com interpretações bem convenientes das Sagradas Escrituras. Além disso, eles também se veem no direito de julgar quem é bom e quem é ruim, ou quem merece ser salvo e quem merece ser abandonado. No fim das contas, não passa de radicalismo e narcisismo disfarçados de fé religiosa, com pessoas medíocres e mesquinhas agindo como se fossem detentoras das chaves do Reino dos Céus.
Uma análise semelhante é feita na série Raised By Wolves (resenha aqui), que também está interessada nas origens da fé e do ateísmo, e que também lida com a radicalização de um conflito religioso. As duas séries mostram situações nas quais mesmo pessoas razoavelmente racionais recorrem a explicações fantásticas quando estão diante de forças ou acontecimentos que elas não são capazes de explicar, levando a trágicas consequências. A diferença é que, enquanto Raised by Wolves o faz em um cenário típico de ficção científica, Missa da Meia-Noite ambienta sua história em um cenário que está muito mais próximo dos clássicos do terror dos anos 1970 e 1980. Aqui, as práticas e os ritos característicos das missas católicas ganham um novo significado, especialmente no que diz respeito ao consumo do corpo e do sangue de Cristo.
O resultado é uma narrativa digna dos melhores dramas e das melhores produções de terror. Missa da Meia-Noite faz muitas referências aos clássicos do gênero enquanto apresenta vários emocionantes dramas humanos. Talvez a minissérie decepcione quem estava interessado apenas no drama ou apenas no terror, mas quem embarcar nessa estranha combinação será recompensado com uma narrativa tão humanamente profunda quanto diabolicamente perturbadora.