Crítica: Millie Black
Get Millie Black, Reino Unido, 2024
Max · Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
Na superfície, Millie Black pode ser considerada apenas mais uma série de detetive, com mistérios e reviravoltas que mantêm o interesse do espectador. Porém, a história de detetive aqui serve apenas como enquadramento para o autor Marlon James abordar temas muito mais profundos e humanos. A ambientação em uma Jamaica hostil e violenta revela não apenas uma herança de colonização e escravidão, mas também os efeitos que essa herança tem sobre as pessoas e sobre a sociedade jamaicana.
A protagonista Millie Black (Tamara Lawrance) tem várias das características do arquétipo do detetive noir. Marcada pelo passado, ela é pragmática e não lida muito bem com autoridades. Por mais que se importe com as pessoas ao seu redor, ela também mente e as utiliza para atingir seus objetivos. Além disso, ela se mostra emocionalmente indisponível e apresenta tendências autodestrutivas.
A questão é que Black está sempre tentando consertar o passado e se sentindo culpada pelas coisas que aconteceram com seu irmão, Orville. Foi por causa dele que ela abandonou uma carreira na Scotland Yard e voltou para a Jamaica para trabalhar no departamento de pessoas desaparecidas. Porém, ao invés de encontrar Orville, ela encontra Hibiscus (Chyna McQueen), uma garota de programa transsexual que quer deixar qualquer traço de Orville para trás.
A Jamaica de Millie Black não é aquela dos estereótipos do reggae e do rastafári, mas sim da homofobia, da transfobia e da desigualdade social. É uma Jamaica de pais ausentes e mães abusivas. Millie acredita que poderia ter feito mais para ajudar Orville diante da violência física e psicológica que a mãe deles direcionava ao garoto. Agora, como investigadora da polícia, ela enxerga Orville em cada pessoa que ela precisa localizar, especialmente as mais jovens.
É por isso que o desaparecimento de Janet Fenton (Shernet Swearine) a deixa mais uma vez obcecada. Filha de uma negligente mãe solteira, o sumiço da garota de dezesseis anos só é reportado pela escola depois que ela falta por duas semanas. Automaticamente, Black entra no modo tudo ou nada, sem medir esforços para localizá-la e sem calcular as consequências de suas ações. Para seu azar, o caso de Janet é muito mais complexo do que parece e deixa um longo rastro de mortes ao longo dos cinco episódios da minissérie.
Cada um dos episódios é narrado por um personagem diferente, revelando suas visões de mundo e como eles justificam as próprias ações. Essas narrações também revelam os sonhos e as limitações de cada um deles, tocando em traumas, arrependimentos, ambições e fragilidades. Percebe-se que o que o escritor Marlon James quer aqui não é apenas contar uma história de detetive, mas sim traçar um perfil da sociedade jamaicana por meio dos efeitos que ela tem sobre diferentes tipos de pessoas.
Isso vale inclusive para o inspetor da Scotland Yard Luke Holborn (Joe Dempsie), inglês que está na Jamaica em busca de uma testemunha que está intimamente ligada ao caso de Janet Fenton. Mas ainda mais interessante é a visão de Curtis (Gershwyn Eustache Jnr), parceiro jamaicano de Millie que precisa manter seu relacionamento com outro homem longe do conhecimento público, exigindo que ele crie uma fachada heterossexual para ser digno do respeito dos colegas de trabalho e da sociedade jamaicana.
O movimento rastafári é conhecido por ser um movimento religioso de resistência ao racismo e ao colonialismo. Porém, ele também é marcado por visões homofóbicas, considerando a homossexualidade anti-vida e degenerante. Isso é refletido na sociedade jamaicana, com letras homofóbicas presentes em músicas de cantores populares (exemplos aqui e aqui) e no fato de que a Jamaica é considerada um dos países mais homofóbicos do mundo.
Para completar, o caso do desaparecimento de Janet leva Millie Black a uma rede de tráfico humano que lembra filmes como 7 Prisioneiros e Som da Liberdade. Porém, a temática da série nos lembra mais produções como Bantú Mama e Escravidão: Uma História de Injustiça. O resultado final é tão dramático e sombrio que poderia facilmente ser chamado de True Detective: Jamaica.
Em apenas cinco episódios, Millie Black mostra o longo caminho que a protagonista precisa percorrer para finalmente lidar com as pendências de seu passado. Os preços que ela e que as pessoas ao seu redor precisam pagar são altíssimos, mas os aprendizados pelos quais os sobreviventes passam os ajudam a entender que, mais importante do que tentar controlar o presente e o passado, é preciso olhar para frente para se construir um novo futuro.