Crítica: Marighella
Marighella, Brasil, 2019
Independente de posições ideológicas, cinebiografia de Marighella deixa a desejar nos mais diferentes aspectos
★★☆☆☆
O que se pode falar de positivo da cinebiografia Marighella é que ela é ousada e tecnicamente bem dirigida. Porém, a única mensagem que o roteirista e diretor Wagner Moura consegue transmitir com razoável sucesso é a de que Carlos Marighella (Seu Jorge) também era um homem de família. No mais, a representação da luta armada e quaisquer mensagens ideológicas se perdem em uma narrativa que está mais preocupada em cobrir os eventos do que em passar uma mensagem central clara e coerente. A própria natureza do grupo de guerrilheiros representado é permeada por incoerências, mas elas aparecem na tela sem maiores reflexões ou contextualizações.
Em seus melhores momentos, o filme lembra a intensidade de cinebiografias como O Grupo Baader-Meinhof (resenha aqui) e a do lendário criminoso francês Jacques Mesrine, que foi dividida em duas partes (Inimigo Público Nº 1 e Inimigo Público Nº 1: Parte 2). Essa semelhança é bem apropriada, pois o primeiro filme trata da história de um grupo de esquerda radical e os dois outros narram a vida de um criminoso tão controverso quanto admirado por parte da população. Infelizmente, Marighella está mais próximo de Wasp Network (crítica aqui), filme que se destaca por remover a maior parte da tensão de uma instigante história real de espionagem.
A produção pode até ser mais bem-sucedida do que filmes como O Que É Isso Companheiro? e Batismo de Sangue, mas ainda falha na abordagem das complexas questões morais envolvidas na luta armada. O resultado é uma tentativa de homenagem que pode ter exatamente o efeito oposto. Sem uma contextualização mais profunda, o que o espectador vê na tela é um grupo de assaltantes e assassinos tentando escapar de policiais implacáveis que estão dispostos a ir até as últimas consequências no cumprimento do dever. Diante dessa imagem, fica fácil adivinhar para qual dos dois lados a população brasileira torceria.
Essa falta de visão é um reflexo do mesmo tipo de ingenuidade que os próprios guerrilheiros demonstram na trama: enquanto alguns levantam o fato de que a população não apoia a causa deles, Marighella acredita que uma vez que eles comecem a combater e a informar sobre os crimes da ditadura militar, o povo mudaria de lado. Porém, não é bem isso o que os últimos 200 anos de nossa História nos informa.
A ideia romantizada que a esquerda brasileira tem de “revolução” (e que é colocada em xeque no filme Nova Ordem) é baseada em movimentos ideológicos como a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Cubana, mas ignora o caos de movimentos genuinamente populares como a Revolução Francesa, que envolveu execuções sumárias e massacres de criminosos encarcerados, e a Revolução Iraniana, que teve influências marxistas mas que acabou instaurando uma teocracia no país.
O que Marighella deveria deixar explícito é a inviabilidade de uma revolução de esquerda no Brasil. Os movimentos guerrilheiros que surgiram após a instauração da ditadura e após a eliminação de qualquer oposição significativa (o que incluía censura à imprensa e à produção cultural) serviam muito mais mais como uma resistência simbólica do que como uma ameaça real ao regime. Um forte sinal disso é que depois que todos os grupos guerrilheiros foram extintos, foram os próprios apoiadores do regime que seguiram realizando atos de terrorismo, como os atentados contra a OAB e a ABI e o atentado do Riocentro. Um dos objetivos desse terrorismo de estado era culpar a esquerda pela violência e justificar a continuidade do governo ditatorial.
Uma abordagem que faria mais sentido em Marighella seria mostrar a vida do protagonista desde a sua juventude, contextualizando a formação de seu pensamento ao longo de sua trajetória e deixando a fase guerrilheira para a última das mais de duas horas e meia de duração do filme. O resultado seria muito mais interessante e informativo, o que talvez justificaria esse longo tempo de duração e exploraria as várias faces dessa figura histórica.