Crítica: Fragmentado
Split, EUA, 2016
Suspense representa um grande retorno para M. Night Shyamalan
★★★★☆
Depois de amargar diversos fracassos de público e/ou crítica por aproximadamente uma década, M. Night Shyamalan deu sinais de vida em 2015 com o moderadamente elogiado A Visita. Agora, com Fragmentado, ele mostra que ainda é capaz de capturar a atenção e surpreender o público de forma única. Mais do que uma volta à boa forma, Fragmentado abre portas para possibilidades quase que completamente inexploradas na indústria cinematográfica. Esta obra não é algo tão memorável quanto seu grande sucesso O Sexto Sentido, mas comparar as duas é tão injusto quanto desnecessário.
Fragmentado gira em torno do sequestro de Casey Cooke (Anya Taylor-Joy) e duas colegas de classe pelo perturbado Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), um homem que sofre de Transtorno Dissociativo de Identidade. As três garotas tem que lidar com os diversos alter egos de Kevin enquanto tentam escapar do cativeiro. Enquanto isso, a doutora Karen Fletcher (Betty Buckley), responsável pelo tratamento de Kevin e defensora de teorias nada convencionais sobre a amplitude da doença, percebe que há algo errado, mas nem imagina que três das 23 personalidades assumiram o controle de seu paciente e pretendem entregar as garotas para uma 24ª persona que está prestes a emergir, chamada apenas de A Besta.
Apesar de uma narrativa inconsistente, Fragmentado é repleto de momentos tão divertidos quanto assustadores, protagonizados especialmente pelas personalidades alternativas de Kevin. Dennis é a personalidade que realiza o sequestro e cuida das garotas, enquanto Patricia é sua parceira no crime e na adoração à Besta. Já Hedwig é um garoto de 9 anos que tem uma importância central na trama, e que Casey tenta repetidamente enganar para conseguir escapar. São nas tentativas de fuga das garotas que o suspense e o terror atingem seus níveis mais altos, sendo superadas apenas pelo terror causado pela chegada da Besta.
Outro destaque da narrativa é o terror psicológico, presente tanto na situação desesperadora na qual as garotas se encontram quanto no histórico de abusos sofridos por Casey e Kevin. Mas é nesse ponto que a premissa apresenta um lado problemático, pois usa traumas e patologias que afetam milhões de pessoas reais como mero mecanismo de roteiro em prol do entretenimento. No caso de Kevin, não é incomum o cinema usar o Transtorno Dissociativo de Identidade para criar personagens que possuem alter egos maldosos e sombrios, mas o tema poderia ter sido tratado com mais tato em Fragmentado. Inclusive, a doutora Michele Stevens, especialista no assunto e portadora da doença, escreveu uma carta aberta a Shyamalan dizendo como seu filme acaba desrespeitando os portadores da doença. “Os cineastas de Hollywood precisam parar de mostrar pessoas com múltiplas personalidades como aberrações perigosas”, ela diz.
Polêmicas à parte, o filme funciona muito bem como experiência cinematográfica, em grande parte devido à ótima atuação de James McAvoy. É interessante também ver todos os temas preferidos do diretor presentes aqui: o conto de fadas, o sobrenatural, a predestinação de alguns dos personagens, a surpresa no final, dentre outros (um dos quais revelo abaixo nos comentários com spoilers). O filme diverte e assusta mesmo sendo relativamente previsível em alguns momentos, o que é bom o suficiente para esse e outros exemplares desse sub-gênero.
Comentários com SPOILERS
A grande surpresa nos instantes finais de Fragmentado é a presença do personagem David Dunn, interpretado por Bruce Willis. Pra quem não se lembra, ele é o herói relutante de Corpo Fechado, suspense de 2000 de Shyamalan. Naquele filme, Dunn descobre ter força e resistência sobre-humanas, mas se recusa a se tornar um super-herói, apesar dos constantes incentivos de seu filho e do aficionado em quadrinhos Elijah Price (Samuel L. Jackson). Quando finalmente aceita essa incumbência, ele descobre que Price é o responsável por diversos ataques terroristas e pretende se tornar seu grande vilão, o auto-intitulado Senhor Vidro.
Isso significa que estamos vendo o surgimento de um universo cinematográfico compartilhado de M. Night Shyamalan. Uma vez que A Horda, que é como Dennis, Patricia, Hedwig e A Besta passam a se chamar, escapa quase ilesa ao fim de Fragmentado e Dunn vê as notícias sobre o estranho caso na TV, tudo indica que ele vai tentar enfrentar esse multifacetado vilão, talvez com a ajuda de Casey Cooke. E se A Horda de alguma forma se encontrar com o inteligente e manipulador Senhor Vidro, o desafio de Dunn vai ser maior ainda. Sendo assim, Fragmentado funciona não apenas como um ótimo suspense de terror, mas também como a história de origem de um poderoso vilão.
Franquias de super-heróis não são nenhuma novidade atualmente, mas uma franquia comandada por Shyamalan e focada no suspense ao invés da ação é algo a se acompanhar. As possibilidades são bem instigantes. Com um tweet, o diretor deu sinais de já estar trabalhando em uma continuação para Fragmentado ou em algum outro filme desse universo compartilhado. Mas algumas questões contratuais ainda precisam ser resolvidas, pois Fragmentado foi feito pelo Universal Studios enquanto Corpo Fechado foi lançado pela Touchstone Pictures, uma subsidiária da Disney. A Disney tem precedentes nesse tipo de acordo, pois conseguiu colocar o Homem-Aranha, cujos direitos cinematográficos pertencem aos estúdios Sony, em Capitão América: Guerra Civil e cedeu o Homem de Ferro para aparecer no próximo filme solo do aracnídeo. Shyamalan conseguiu colocar David Dunn em Fragmentado graças a um gesto de boa fé da Disney, mas contratos ainda precisam ser assinados.
Atualização: a primeira versão desse post dizia que o nome do personagem de Willis era Kevin Dunn, ao invés de David Dunn.
Atualização 2: o diretor M. Night Shyamalan confirmou sequência e atores. Clique aqui para mais detalhes.