Crítica: Extermine Todos os Brutos
Exterminate All the Brutes, EUA, 2021
Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
A minissérie documental Extermine Todos os Brutos é mais longa e mais lenta do que o ideal, e ainda assim é perfeita. O cineasta Raoul Peck aproveita muito bem os quatro episódios de uma hora para destrinchar as camadas de narrativas e racionalizações que cobrem a História do mundo ocidental. Ele faz isso por meio de um grande conjunto de recursos, sejam imagens de arquivo, filmes hollywoodianos, filmes do próprio diretor e encenações, dando um ar tão sombrio quanto poético para a chocante história real que está sendo contada e que ainda está em curso.
A ideia do diretor é rever os mitos criadores dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais, mostrando como o lado mais sangrento e inumano dessas narrativas é esquecido ou meramente visto como um mal necessário. O que os muitos massacres e genocídios presentes nessa história possuem em comum é uma “ideologia do extermínio”, sempre influenciada por alguma forma de supremacismo, especialmente o supremacismo branco. Sob essa ideologia, as pessoas que se consideram superiores (ou “civilizadas”) se veem no direito de exterminar todos aqueles vistos como inferiores, ou bárbaros, ou simplesmente “brutos”.
Essa ideologia permitiu que os conquistadores e “desbravadores” europeus tratassem tanto a África quanto as Américas como uma “natureza intocada”, ou terra nullius, uma terra desocupada e disponível para a colonização, bastando apenas “domar” ou “remover” os “selvagens” que já as ocupavam. Uma vez que a História é escrita pelos vencedores, essa ideologia ainda segue em voga, mesmo entre indígenas e afrodescendentes que realmente acreditam que os europeus levaram “a civilização” para os outros continentes, como se nenhuma outra civilização fosse possível.
Para contar essa história, Peck também envolve sua própria trajetória na narrativa. Seu ponto de vista é relevante não apenas por ele ser um homem negro, mas por ser um homem negro nascido no Haiti e que cresceu entre a República Democrática do Congo, os Estados Unidos e a França, além de ter obtido sua graduação em cinema na Alemanha. Essas condições, combinadas com a influência de acadêmicos que ele conheceu pelo caminho, permitiram que ele fizesse uma justaposição entre a História e as interpretações da História que ele viu pelo mundo, seja na academia ou na arquitetura e monumentos das cidades europeias. Pode-se dizer que além de incluir a própria história, Peck também inclui a história da concepção da própria minissérie.
A justaposição de fatos históricos é uma das principais ferramentas utilizadas pelo diretor em Extermine Todos os Brutos, permitindo que ele apresente os pontos em comum entre o extermínio de populações indígenas, a escravização de africanos e o extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas. As ideias de superioridade racial e de “limpeza heroica” de um paraíso na Terra são dois desses pontos em comum, e são ideias que ainda podem ser facilmente encontradas nos mais diversos tipos de extremismo político e religioso.
O mergulho na História feito por Peck é muito mais profundo e revelador do que aqueles feitos na série documental Escravidão: Uma História de Injustiça (resenha aqui), protagonizada pelo ator Samuel L. Jackson. Ainda assim, as duas séries podem ser consideradas complementares, pois juntas contam uma História que ainda está longe de alcançar o grande público.
Extermine Todos os Brutos também faz questão de mostrar o lado mais chocante dos acontecimentos, seja por meio de violentas encenações (em sua maioria, estreladas pelo ator Josh Hartnett) ou por meio de fotos e vídeos históricos de corpos empilhados e membros decepados. Isso não é feito para fins sensacionalistas, mas sim para trazer à tona o nível de brutalidade dos acontecimentos narrados. Algo equivalente foi feito no polêmico filme The Nightingale (comentário aqui), que mostra alguns dos terrores da Austrália colonial sem rodeios e de forma potencialmente traumática para muitos espectadores.
O resultado do trabalho de Peck é uma minissérie que, por mais que possa ser cansativa para alguns, se mostra completa e absolutamente bem-sucedida no que pretende fazer. Extermine Todos os Brutos é uma mistura de produção artística com produção acadêmica, e é capaz de levar o espectador por uma intensa jornada pela História e de fazê-lo pensar sobre a natureza da civilização da qual faz parte. Mais que isso, a obra ajuda a contextualizar as notícias e os acontecimentos diários do nosso mundo, mostrando as raízes de boa parte da violência que nos rodeia.