Crítica: Eu Me Importo
I Care a Lot, EUA, 2020
Apesar da ótima atuação central, filme se perde dentre as muitas inconsistências no roteiro
★★☆☆☆
Em Eu Me Importo, o que poderia ser uma inteligente e afiada sátira sobre o sistema econômico se reduz a uma comédia de humor negro sobre a rivalidade entre uma golpista e um mafioso. A primeira metade até funciona razoavelmente bem, apesar de uma narrativa simples e sem inspiração que adiciona muita pouca tensão e intensidade à história. Porém, na segunda metade, as inconsistências começam a se acumular umas sobre as outras a ponto de comprometer a suspensão da descrença e o interesse do espectador.
A história da golpista e guardiã legal de idosos Marla Grayson (Rosamund Pike) parece ir na direção dos temas tratados no ácido drama O Homem da Máfia, que aborda como um sistema econômico impiedoso beneficia apenas as pessoas mais impiedosas. Mas a produção da Netflix jamais abraça o nível de pessimismo e acidez daquele filme, se tornando uma comédia de erros quase desprovida de um significado maior. Em determinado ponto, o filme tenta inclusive redimir sua protagonista e fazer o espectador se simpatizar com ela, a troco de tornar sua rivalidade com o mafioso Roman Lunyov (Peter Dinklage) mais interessante. Quando a trama finalmente volta à temática principal, dificilmente o espectador estará se importando com o desfecho.
O roteiro também erra ao não manter um tom consistente entre os personagens e as situações. Grayson parece ser a única personagem capaz de usar de subornos e corrupção para conseguir o que quer, deixando Lunyov com algumas tentativas atrapalhadas de libertar a própria mãe, Jennifer Peterson (Dianne Wiest). Além disso, em alguns momentos a protagonista parece não ter nenhum senso de autopreservação, enquanto em outros luta pela própria vida e arma planos mirabolantes para salvar a si e a sua parceira Fran (Eiza González). E há também o caso dos matadores que são apresentados como extremamente profissionais mas que se mostram extremamente incompetentes em uma única noite.
No geral, Eu Me Importo está longe do nível de outros filmes sobre psicopatas com elementos de humor negro, como O Abutre e Sexy Beast. O filme poderia pelo menos entregar sua mensagem com a mesma eficácia do drama O Tigre Branco (crítica aqui) ou ir na direção de ótimos filmes como Má Educação (crítica aqui) e O Lobo de Wall Street. A corrupção em pequena escala de Má Educação até possui paralelos com os médicos e cuidadores envolvidos nos esquemas de Grayson.
Apesar disso, Eu Me Importo apresenta mais uma atuação fantástica de Rosamund Pike, quase no nível de seu trabalho em Garota Exemplar. Infelizmente, dessa vez o roteiro não está à altura de seu talento. A impressão que fica é a de que o roteirista e diretor J. Blakeson se concentrou tanto em desenvolver diálogos engraçados e estilosos que se esqueceu de manter a consistência entre eles, resultando em um filme que não passa de um ensaio de sátira ou de um exercício de estilo.