Crítica – Duna: Parte 2

Dune: Part 2, EUA, 2024



Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes

★★★★☆


Debaixo de um sol escaldante, uma multidão inflamada clama o nome de um líder idolatrado. Nada do que ele disser será questionado. Tudo o que ele ordenar será cumprido. A multidão precisa do líder assim como o líder precisa da multidão. Sua poderosa voz ecoa pelo deserto, confirmando as crenças de que ele irá lhes salvar de todo o sofrimento.

Os devotos não precisam refletir sobre seus intensos sentimentos e nem sobre as consequências de suas ações. Eles não refletem sequer sobre a limitada liberdade que aquele messias lhes oferece. Naquele momento, a liberdade para eles não significa tomar suas próprias decisões e se responsabilizar por elas, mas sim decidir qual será o líder e qual será a ideologia que eles irão seguir cegamente.

O que eles realmente querem não é liberdade, mas sim certezas absolutas e garantias de salvação. E a grandiosidade desse momento só é menor do que a grandiosidade da tragédia que ele irá causar.

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Assim como o protagonista Paul Atreides (Timothée Chalamet), o espectador tem visões do passado e do futuro da humanidade em Duna: Parte 2. Essa trama de fanatismo religioso já se repetiu várias vezes ao longo da História e parece fadada a se repetir várias vezes mais. Além de destrinchar os mitos fundadores de várias religiões e expor os mecanismos cognitivos por trás deles, o filme oferece uma experiência quase religiosa por meio de um espetáculo visual e sonoro que navega entre sonho e pesadelo.

Os mecanismos da religião já foram recentemente abordados em séries como Raised by Wolves, Missa da Meia-noite e Sandman, além do filme O Milagre. Ambientado no ano de 10191, Duna: Parte 2 adiciona mais uma camada sobre as ideias exploradas nessas outras produções. Juntas, elas apresentam a crença religiosa como uma fonte de esperança e como uma fonte de fanatismo; como uma ferramenta de sobrevivência e como uma ferramenta de destruição; em suma, como um “santo remédio” que pode causar assombrosos efeitos colaterais.

O filme revela os dogmas e as profecias religiosas como meros instrumentos de propaganda, destinados a convencer os fiéis de que toda aquela mitologia se trata da mais pura verdade. Uma vez que as superstições e profecias da ordem das Bene Gesserit são ensinadas aos Fremen desde suas infâncias, eles não são capazes de enxergar essas histórias apenas como histórias. Para eles, essas histórias de heróis e salvação são verdades inquestionáveis.

O método das Bene Gesserit é notável. Em Arrakis, um planeta desértico vital para um império galático e terra nativa dos Fremen, as sacerdotisas plantam a profecia do Lisan al-Gaib. As características profetizadas para essa figura messiânica (estrangeiro, detentor do poder da Voz, conhecedor dos costumes nativos, filho de uma Reverenda Madre, etc.) possibilitam que elas necessariamente definam quem será o “escolhido” e façam essa pessoa se encaixar nos sinais esperados pela população.

A ambientação da trama em um planeta onde a água é um recurso extremamente escaço também é muito apropriada. Historicamente, são populações empobrecidas e desesperadas que recorrem ao messianismo para tentar alguma forma de salvação. Exemplos disso estão tanto na fundação das grandes religiões monoteístas quanto em eventos como a Guerra de Canudos e a Guerra do Contestado.

Essas populações fragilizadas geralmente estão desesperadas o suficiente para acreditar em promessas de salvação e para enxergarem apenas o que querem (ou precisam) enxergar nas figuras messiânicas. Dessa forma, elas veem sinais divinos onde há apenas retóricas, manipulações e/ou coincidências. Em Duna: Parte 2, essas características são especialmente destacadas em Stilgar (Javier Bardem), um líder Fremen que jamais duvida da “santidade” de Paul.

Vale notar que a trama do romance Duna não é apenas um alerta contra “falsos profetas”. Em primeiro lugar, acreditar que alguém é um profeta de verdade também não é nada mais do que uma questão de crença, e não uma questão de realidade factual. Indo além, nas palavras do autor Frank Herbert:

“Duna” foi direcionado a essa ideia do líder infalível, pois a minha visão da História diz que os erros cometidos por um líder (ou cometidos em nome de um líder) são amplificados pelo número de pessoas que o seguem sem questionamento.

Dessa forma, Duna: Parte 2 conta uma história de terror com elementos de fé e fanatismo que conseguimos reconhecer ao nosso redor ou nas notícias diárias. Essas não são ameaças que precisamos imaginar em um futuro distante, pois os eventos de Duna representam apenas a humanidade repetindo sua própria História. Ainda assim, conhecer essas tendências podem e devem nos ajudar a sair desse ciclo de repetição.

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O diretor Denis Villeneuve já havia abordado o fanatismo religioso no drama Incêndios e as crenças messiânicas na ficção científica Blade Runner 2049. Nesse último, o protagonista é um androide que passa a acreditar ser especial, a prova viva de um milagre, até finalmente entender a real natureza de sua crença. Em Duna: Parte 2, o protagonista faz um percurso contrário.

Sabendo das consequências de sua aceitação como Lisan al-Gaib e com a ajuda de Chani (Zendaya), Paul Atreides faz o máximo possível para resistir. Porém, as manipulações de sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), combinadas com a crescente violência dos Harkonnen e com seu latente desejo de vingança o levam a ceder. De repente, ele para de pensar nas consequências de longo prazo e leva em conta apenas os problemas com os quais ele tem que lidar no curto prazo. Dessa forma, Paul é uma das últimas pessoas a ser radicalizada pelo culto ao Lisan al-Gaib.

Assim, Duna: Parte 2 mostra a tragédia de um “herói” que trai tudo o que ele é e tudo o que ele ama em nome de uma grandiosa vingança. O filme revela tanto a originalidade da visão do autor Frank Hebert quanto a admiração de Villeneuve por essa obra literária. Mesmo sendo baseado em uma obra amplamente referenciada em outras produções artísticas (o que torna parte da trama relativamente previsível), o filme ainda surpreende pela ousadia temática da história e pela intensidade da experiência cinematográfica que ele oferece.