Crítica: Depois da Verdade – Desinformação e o Custo das Fake News
After Truth: Disinformation and the Cost of Fake News, EUA, 2020
Documentário mostra alguns dos bastidores das maiores fake news que afetaram os EUA nos últimos anos
★★★★☆
Com apenas 1h30m de duração, o documentário Depois da Verdade: Desinformação e o Custo das Fake News faz um rápido apanhado de algumas das principais fake news que atingiram os EUA nos últimos anos. As entrevistas com jornalistas, especialistas e até propagadores de notícias falsas ajudam a entender melhor os mecanismos envolvidos no uso dessas técnicas de manipulação. Mesmo com uma abordagem inteiramente técnica, o filme ainda consegue mostrar os impactos das mentiras e teorias da conspiração sobre o mundo real e sobre as vidas de pessoas reais.
Isso é válido especialmente nos casos do Pizzagate e do assassinato do democrata Seth Rich, cuja morte gerou um volume de notícias falsas alto o suficiente para infernizar as vidas dos familiares do rapaz. As famílias das vítimas do tiroteio na escola primária de Sandy Hook também são mencionadas, pois até hoje precisam lidar com pessoas que acreditam que o massacre de crianças e professores não passou de uma farsa.
Por um lado, Depois da Verdade mostra a fragilidade das pessoas diante das notícias falsas. As pessoas comuns possuem seus medos e suas paranoias, mas, quando eles são reforçados por apelativas mensagens compartilhadas massivamente na Internet, as pequenas suspeitas infundadas e irracionais acabam se tornando certezas inabaláveis. E essas certezas podem levar as pessoas a tomarem ações no mundo real, seja votando em um candidato, seja deixando de ir votar, seja entrando armado em uma pizzaria para investigar uma teoria da conspiração, como aconteceu no caso Pizzagate.
Em outras palavras, as fake news dão às pessoas a possibilidade de acreditar apenas no que elas querem acreditar, como se a realidade fosse uma questão de ponto de vista ou de opinião. Isso vale tanto para os defensores da terra plana quanto para os negacionistas do Holocausto, por exemplo.
Por outro lado, o documentário mostra a disposição de atores políticos em utilizar esse tipo de ferramenta. Enquanto um lobista conservador invoca desde a filosofia até a indiferença (“Eu uso fake news. E daí?”) para justificar seu uso das notícias falsas, um ativista democrata argumenta que se o outro lado está usando, eles também devem usar, pois correm o risco de ficar para trás e nunca mais vencerem uma eleição.
Independente dos argumentos utilizados, os dois lados encontram no Facebook a plataforma perfeita para realizar esse tipo de atividade. O mecanismo de anúncios que foi pensado para ajudar as empresas a atingirem diretamente seus públicos alvos com um alto grau de exatidão também pode ser utilizado para fazer o mesmo com eleitores. A partir do direcionamento por sexo, faixa etária, localização e lista de interesses, os propagandistas sabem exatamente o que mostrar para cada segmento para obter a reação emocional desejada.
Isso fica ainda mais grave quando o Facebook é utilizado como plataforma de colheita de dados, como é mostrado no documentário Privacidade Hackeada (crítica aqui), disponível na Netflix. Nele, uma ex-funcionária da agência Cambridge Analytica revela o quão longe sua empresa foi tanto no acúmulo de dados privados de cidadãos quanto na “arte” de manipular eleições ao redor do mundo.
Um consenso entre todos os entrevistados em Depois da Verdade é de que não há como prever os efeitos a longo prazo dessa nova realidade. As consequências do uso desses métodos seriam visíveis apenas nas próximas décadas, a não ser por um detalhe: a pandemia do novo coronavírus.
Ao invés de décadas, muitas das pessoas que não estão acreditando nas orientações de especialistas sobre a atual pandemia vão sentir na pele já nos próximos meses as consequências concretas das fake news. Mesmo quem sobreviver terá passado por momentos traumáticos ou perdido entes queridos porque escolheram duvidar da palavra de pessoas que passaram anos estudando esses assuntos.
Muitas pessoas exigem ou esperam para ver a verdade com os próprios olhos, como se fosse factível que cada cidadão fizesse sua própria investigação dos acontecimentos. É por isso que pagamos por serviços que especificamente contratam pessoas para pesquisar sobre a natureza e a sociedade ou para apurar acontecimentos. Assim como marceneiros ou mecânicos, cientistas e jornalistas fazem um trabalho especializado que exige tempo, dedicação e treinamento. E, como em qualquer outra profissão, nem sempre o resultado é perfeito, mas é sempre melhor do que aqueles obtidos por amadores.
Nos momentos finais da minissérie Chernobyl (comentário aqui), o protagonista faz a seguinte reflexão:
Ser cientista é ser ingênuo. Estamos tão concentrados em buscar a verdade, que nem consideramos que poucos querem que a encontremos. Mas ela está sempre lá, independente de a vermos ou não, independente de querermos vê-la ou não. A verdade não se importa com nossas necessidades ou desejos, não se importa com nossos governos, ideologias ou religiões. Ela permanecerá esperando, para sempre. E esse, finalmente, é o presente de Chernobyl. Onde antes eu temia o custo da verdade, agora eu só pergunto: qual o custo da mentira?