Crítica: Corra!

Get Out, EUA, 2017



Terror surpreende pela originalidade e ótima execução

★★★★☆


Alguns filmes recentes, como A Bruxa e O Lamento (sobre os quais escrevi um pouco aqui), extraem suas premissas de medos religiosos primordiais presentes em várias culturas, o que torna o terror psicológico mais intenso e profundo, de forma que ele permanece com o espectador mesmo após a sessão. Algo semelhante é feito em Corra!, com a diferença de que aqui os medos religiosos são substituídos por medos e tensões raciais que ainda permeiam a sociedade dos EUA e de países como o Brasil e a África do Sul, por exemplo. O resultado é um dos melhores e mais originais filmes do ano, revelando o magistral talento do comediante Jordan Peele como escritor e diretor.

Para que o constante clima de tensão de Corra! funcione, é importante conhecer um pouco da realidade das relações raciais nos EUA. Sabendo isso, o espectador vai entender o porque da ansiedade extra sentida por Chris (Daniel Kaluuya), um homem negro que está prestes a conhecer os pais de sua namorada branca, Rose (Allison Williams). As tensões raciais também explicam o desconforto de Chris quando outros parentes de Rose chegam para realizar uma grande reunião de família, tornando-o um dos poucos negros dentre as dezenas de convidados. Mas é o comportamento das outras pessoas negras ali presentes que faz Chris perceber que há algo muito estranho ocorrendo, apesar de ele não saber exatamente o quê. Nesse sentido, o filme consegue igualar o nível de desconforto causado pelo clima do ótimo O Convite, uma pequena obra-prima do cinema de suspense lançada em 2015 (mais aqui).

getout1O racismo manifestado em Corra! não vem na forma de ódio ou intolerância, mas justamente o contrário. O esforço que os pais de Rose fazem para deixar claro que eles não são racistas acaba revelando que eles veem Chris, antes de mais nada, como homem negro. O mesmo ocorre quando ele é apresentado aos outros membros da família: eles imediatamente fazem perguntas como “pra você, o que significa ser negro nos dias de hoje?” ou elogiam sua “composição genética” e atributos físicos (veja que esses são “elogios” mais comumente feitos a animais de carga ou algo que o valha). Ou seja, cada vez que Chris é apresentado a pessoas brancas, elas imediatamente o fazem lembrar da cor de sua pele. São comentários que eles jamais fariam se estivessem sendo apresentadas a uma pessoa branca, e o fato de que fazem isso com as melhores intenções não diminui o sentimento de alienação causado. Ao invés de se sentir bem-vindo, Chris vai se sentido cada vez mais como um corpo estranho naquele ambiente.

O que Corra! faz é pegar toda essa “adoração” e elevá-la a um nível de pesadelo. Alguns dos maiores medos de Chris e algumas das paranoias de seu amigo Rod (LilRel Howery) vão se concretizando até um clímax tão intenso quanto surpreendente (veja abaixo os “Comentários com Spoilers”), capaz de fazer algumas pessoas saírem tremendo da sessão.

Boa parte dessa intensidade é fundamentada nas ótimas atuações de Kalluya e do elenco de apoio. Enquanto Kaluuya se destaca de forma clara e genial, seus coadjuvantes entregam performances enigmáticas que são vitais para a construção do clima de paranoia. Bradley Whitford e Catherine Keener transmitem perfeitamente a inquietante amabilidade dos pais de Rose, enquanto Caleb Landry Jones deixa claro desde a primeira cena em que aparece que há algo muito errado com o irmão dela. Já LilRel Howery está absolutamente hilário como Rod, o amigo que fica cuidando do cachorro de Chris enquanto ele viaja com a namorada. Por fim, Marcus Henderson e Betty Gabriel estão assombrosos como os estranhos empregados da família de Rose, sendo capazes de provocar terror apenas ao manipular suas expressões faciais e falarem no exato tom e vocabulário típico de pessoas brancas nos EUA.

getout2Com um roteiro inteligente e uma mão firme e habilidosa na direção, Corra! mostra que Jordan Peele é um talento a ser acompanhado. O diretor e roteirista consegue equilibrar sátira, horror, humor e comentário social de forma perfeita em um terror psicológico que já nasce cult e corre o risco de se tornar um novo clássico nos próximos anos.

Vale lembrar que Corra! é o segundo grande sucesso de bilheteria que a produtora Blumhouse Productions lançou em parceria com a Universal Studios em 2017, tendo uma renda mundial de $214,8 milhões de dólares com um filme que custou $4,5 milhões. Seu outro grande sucesso foi Fragmentado (crítica aqui), que, com um orçamento de $9 milhões, arrecadou $275,9 milhões no mundo inteiro. Corra! também é um sucesso absoluto de crítica, com 99% de aprovação no RottenTomatoes (de 260 críticas, apenas 1 foi negativa).

Comentários com Spoilers

O que torna Corra! tão eficaz no terror que provoca é o calvário pelo qual Chris passa ao longo do filme. A narrativa consegue fazer com que a audiência sinta sua insegurança e seu isolamento dentre aquela família branca. Os outros personagens negros poderiam ajudá-lo a se sentir mais confortável, mas fazem justamente o contrário. Mesmo seu amigo Rod não lhe dá o apoio necessário, pois está mais preocupado com suas teorias conspiratórias do que escutar o que Chris está dizendo.

O requinte de crueldade é quando Rose, que até aquele ponto era a única pessoa em quem ele podia confiar e compartilhar suas preocupações, trai completamente sua confiança e revela que esteve o tempo inteiro manipulando-o para realizar o bizarro plano da família. O destaque aqui vai para a atuação de Allison Williams, especialmente no exato momento que ela sai do modo “namoradinha preocupada” para “sociopata cruel”.

O bizarro plano da família é uma das últimas fases da tortura psicológica pela qual Chris passa: de repente, ele está amarrado em uma cadeira e vislumbrando a possibilidade de passar o resto de sua vida como mero passageiro (e prisioneiro) em seu próprio corpo. A representação que o filme faz do “lugar afundado” é um pesadelo à parte, transmitindo quase perfeitamente a angustia de se perder o controle das próprias funções motoras e ficar à mercê de agentes externos. O fato de que “Walter” (Marcus Henderson) comete suicídio assim que retoma controle de seu corpo dá uma ideia do pesadelo pelo qual ele passou, além de ser mais um acontecimento para aumentar o trauma sofrido por Chris.

O controle externo do corpo é uma metáfora para a ansiedade causada pelas interações mencionadas anteriormente. Quando uma pessoa branca automaticamente elogia o vigor físico ou a carga genética de um negro, a impressão que isso lhe passa é de que seu corpo é muito mais interessante ou relevante que sua personalidade. É como se a pessoa branca estivesse manifestando um desejo subconsciente de ser negra, fazendo com que o interlocutor tema que aquela pessoa gostaria de assumir o seu lugar. O que Jordan Peele faz com Corra! é extrapolar e concretizar esse medo, mostrando um grupo de pessoas brancas que estão dispostas a “comprar” corpos negros (em uma óbvia alusão ao mercado de escravos) e terem suas consciências transferidas para eles, deixando o ocupante original como mero espectador. Em última instância, o terror aqui está nessa forma extrema de apropriação.