Crítica: Cidade Invisível – 1ª Temporada
Cidade Invisível, Brasil, 2021
Apesar de imperfeita, série representa uma ótima novidade para a cultura pop brasileira
★★★☆☆
A mistura entre folclore brasileiro e suspense policial de Cidade Invisível funciona bem melhor do que o esperado. Os elementos de fantasia invadem com naturalidade a paisagem urbana da série, criando um mundo no qual personagens clássicos do folclore nacional vivem normalmente entre as pessoas normais, numa pegada meio Deuses Americanos e lembrando os melhores aspectos de As Boas Maneiras (crítica aqui). Com um pouco mais de inspiração e profundidade, a trama poderia ser elevada a um dos produtos “classe A” do catálogo da Netflix.
Os roteiros avançam de forma ágil e instigante, construindo um envolvente mistério enquanto apresentam gradualmente o lado místico da trama. A atmosfera neo-noir só é interrompida por diálogos que não soam inteiramente naturais, o que pode ser culpa tanto da escrita quanto das irregulares atuações. Enquanto atores como Alessandra Negrini e Fábio Lago sempre dão um jeito de adicionar um certo “tempero” a seus personagens, o resto do elenco possui bons e maus momentos, variando entre os muito convincentes e aqueles nos quais parecem estar simplesmente lendo as páginas do roteiro. É aí que um pouco mais de inspiração seria muito bem vinda.
O elenco certamente se beneficiaria de uma escrita mais multidimensional para os personagens, que parecem tirados de um romance infanto-juvenil. A não ser que esse realmente seja o público alvo da série, a adição de profundidade e complexidade psicológica automaticamente elevaria o nível da ótima trama. Um exemplo de como isso poderia ser feito está em Dente por Dente (crítica aqui), suspense nacional que possui vários elementos em comum com Cidade Invisível.
Essa falta de profundidade é parcialmente compensada pela ótima adaptação dos personagens clássicos para os tempos atuais. A Cuca, o Saci, a Iara, o Curupira, o Boto, o Porco do Mato (que é a “montaria” do Curupira) e o Corpo-Seco aparecem em suas convincentes caracterizações modernas e precisam lidar com o assassinato de um deles. A história é contada sob o ponto de vista de Eric (Marco Pigossi), um policial ambiental que tem seu mundo virado de cabeça para baixo depois de perder a esposa em um incêndio florestal e ter que lidar com eventos cada vez mais estranhos durante a investigação.
Os personagens que Eric encontra pelo caminho se encaixam perfeitamente no gênero noir. O misterioso Manaus (Victor Sparapane) é encontrado morto em condições semelhantes a de sua esposa, enquanto a misteriosa Inês (Alessandra Negrini) parece saber muito mais do que está disposta a dizer ao investigador. Há também a femme fatale Camila (Jéssica Córes) e o bruto leão-de-chácara Tutu (Jimmy London), ambos a serviço de Inês. Paralelamente, a pequena Luna (Manuela Dieguez), filha de Eric, conhece Isac (Wesley Guimarães), que é amigo do mal-humorado Iberê (Fábio Lago).
A ambientação no Rio de Janeiro funciona muito bem para atender as expectativas do público internacional, mas não há um esforço para explicá-la na história. Por que quase todas as entidades do folclore brasileiro foram parar na cidade? Algumas delas são típicas do norte do país, mas por algum motivo se estabeleceram no Rio. Isso não é necessariamente um problema, mas a história ficaria mais “redonda” com algum tipo de explicação, por menor que seja.
A série se beneficia (ou é consequência) do fato de que as questões ambientais são cada vez mais importantes para o país e para o mundo, inserindo dramas reais nessa história de fantasia. Seria praticamente impossível usar os personagens folclóricos citados anteriormente sem abordar essas questões, pois eles também são resultantes do processo de formação do Brasil, durante o qual culturas indígenas, africanas e europeias se misturaram em um ambiente marcado pela violência de gênero, pela exploração insustentável de recursos naturais e pela escravidão.
Essa boa primeira temporada deixa Cidade Invisível com muitas possibilidades para o futuro. A série pode seguir na linha da Trilogia de Baztán, que deixa os elementos do folclore basco na periferia da trama, ou na linha de Deuses Americanos, ampliando o conflito entre as entidades mágicas. É possível também uma abordagem meio Arquivo X, com Eric e sua parceira Marcia (Áurea Maranhão) investigando casos com o envolvimento das entidades folclóricas. Independente do caminho escolhido, a série representa uma ótima novidade na produção nacional, dando uma cara mais pop a nossa cultura popular.