Crítica: As Viúvas
Widows, EUA/Reino Unido, 2018
Filme faz um estudo dos efeitos da passagem do tempo sobre os personagens e sobre as relações de poder em uma selva de pedra como muitas outras
★★★★☆
Dirigido por Steve McQueen, responsável por obras como 12 Anos de Escravidão e Shame, era de se esperar que As Viúvas apresentasse algum comentário social, mas o roteiro co-escrito pelo diretor e pela escritora Gillian Flynn vai muito além disso. Além da história das viúvas que resolvem realizar um assalto para quitar uma dívida de seus falecidos maridos, há também uma trama política com ramificações sociais e filosóficas em um realista ambiente urbano de uma grande cidade americana. Apesar dessa trama extra trazer um custo para o desenvolvimento da trama principal, é ela que eleva o filme a um outro patamar.
A temática geral aborda o efeito das pressões sociais e da passagem do tempo sobre pessoas aprisionadas em um sufocante e desolador ambiente urbano, sejam elas traficantes de drogas, políticos corruptos ou mulheres pobres de bairros periféricos. Esses personagens estão divididos entre aceitarem suas condições nos ciclos que se repetem há séculos ou lutar para de alguma forma escaparem deles.
As viúvas do título são pegas no fogo cruzado de uma disputa política entre forças tradicionais e aspirantes a novos detentores do poder na cidade de Chicago. A renúncia do vereador Tom Mulligan (Robert Duvall), acuado por denúncias de corrupção, abre uma vaga na câmara municipal da cidade, fazendo com que seu filho Jack Mulligan (Collin Farrell) dispute a vaga contra o contraventor Jamal Manning (Brian Tyree Henry) em uma eleição especial.
Jack entra na disputa apenas para manter seus privilégios e dar continuidade à tradição de sua família como clã político local. Porém, ele dá sinais de cansaço com essa tradição, já que ela o condena ao mesmo jogo de mentiras e acordos escusos que teve início muito antes de seu nascimento. Por mais que goste dos luxos de sua confortável vida, as obrigações de poder do “negócio” da família não condizem com os altos padrões de civilidade que ele (erroneamente) atribui a si próprio.
Por outro lado, seu pai parece estar agarrado a essa tradição com todas as suas forças. A maior missão de vida de Tom Mulligan foi se manter no poder, e ele espera a mesma dedicação de seu filho. O velho Tom fala com a convicção de uma pessoa que não conhece ou não aceita nenhuma outra realidade ou ponto de vista. Ele tem as mais absolutas certezas de que nada muda de verdade e de que a única obrigação que ele e seus descendentes possuem é a de se manterem no poder e repetir o passado.
Enquanto isso, o criminoso Jamal Manning vê na eleição uma oportunidade de se elevar do submundo e passar a ganhar dinheiro da mesma forma que os ricos e brancos detentores do poder o fazem há séculos. Sua candidatura é um sinal de mudança, ainda que para a população pobre do distrito que ele pretende representar signifique apenas uma mudança na cor da pele de seus exploradores. Ele conta com a ajuda de seu violento irmão Jatemme Manning (Daniel Kaluuya) para resolver um sério problema que atinge a sua campanha e desencadeia a trama principal de As Viúvas.
O conhecido criminoso Harry Rawlings (Liam Neesom) e seus comparsas roubam $2 milhões de dólares que Jamal usaria para financiar sua campanha, mas uma explosão durante a fuga mata os criminosos e queima o dinheiro. Jamal passa a pressionar a agora viúva Veronica Rawlings (Viola Davis) para recuperar a quantia roubada, levando-a a tentar recrutar as viúvas dos comparsas de Harry para executar um assalto que seu marido havia deixado planejado antes de morrer.
A repentina morte de Harry pega Veronica completamente despreparada. Além de seu marido ser o responsável pela manutenção do alto padrão de vida do casal, os dois ainda estavam se recuperando de uma tragédia que os havia atingido meses antes. De repente, ela se encontra em uma situação na qual, além de não ter o apoio emocional e financeiro do marido, passa a ser pressionada por um criminoso violento. Isso não estava em seus planos, mas agora ela se vê forçada a recuperar o pleno controle sobre a própria vida.
Algo semelhante é válido para Alice (Elizabeth Debicki), uma das viúvas recrutadas por Veronica. A diferença é que Alice era completamente dependente do falecido Florek (Jon Bernthal) e não dispõe da inteligência e força de vontade apresentadas pela líder do grupo. Desamparada, o conselho que ela recebe de sua mãe (Jacki Weaver) é que faça como as garotas “espertas” e se venda para poder ganhar milhares de dólares por noite. Acostumada a depender do dinheiro de homens interessados em sexo, a mãe não parece ser capaz de enxergar além da realidade que o mundo lhe mostrou ao longo dos anos, assim como o patriarca dos Mulligans.
Já a viúva Linda (Michele Rodriguez) é uma empreendedora que sustentava os gastos do marido Carlos (Manuel Garcia-Rulfo) e cuja situação financeira não deveria ter se complicado com a morte dele. Porém, além do problema com os Mannings, Carlos deixou dívidas que ela não conhecia e que colocam o seu negócio em risco. Com dois filhos para cuidar, a situação dela se torna tão complicada quanto a das outras mulheres.
É Linda que recruta Belle (Cynthia Erivo), uma mãe solteira que se desdobra entre o trabalho em um salão de beleza e bicos como babá para poder pagar as contas. Uma vez que Veronica não conseguiu recrutar uma quarta viúva, Belle entra como a motorista do grupo, já que o plano deixado por Harry exige a participação de quatro pessoas. Além disso, logo fica claro que ela é a que tem o melhor preparo físico dentre as futuras assaltantes, o que é mostrado em um momento familiar a muitos trabalhadores: correndo para não perder o ônibus.
Esse rico conjunto de tramas e personagens (e algumas reviravoltas) é um reflexo do material original no qual o filme é baseado: uma série de televisão britânica dos anos 1980. Apesar de ser muito interessante, todo esse conteúdo acaba causando dois problemas para a narrativa.
O primeiro é que o desenvolvimento da trama política acaba comprometendo a trama das viúvas em si. Justamente por serem bem desenvolvidas como seres humanos reais, fica a impressão de que elas muito facilmente recorrem à atividade criminosa para sair de seus problemas. Um foco ainda maior no passado e na situação dessas mulheres ajudaria a compor uma justificativa mais sólida para um ato tão perigoso e extremo quanto o assalto planejado.
O segundo problema tem a ver com as expectativas geradas pelo material de divulgação. Os dois trailers lançados (esse e esse) dão a entender que o filme se trata de um thriller de suspense ou ação. Entretanto, o ritmo da narrativa de As Viúvas está muito mais próximo de um drama, inclusive se permitindo a momentos profundamente reflexivos, como o foco no sermão do reverendo Wheeler (Jon Michael Hill) quando esse é apresentado. Isso não tira os méritos da produção, mas parte dos espectadores podem se sentir enganados.
Algo semelhante ocorreu com o filme O Homem da Máfia, que tem outros pontos em comum com As Viúvas, como as reflexões e o comentário social em meio ao violento mundo dos gangsters americanos. Esses são filmes que exigem a completa atenção do espectador, pois nem todos os detalhes são explicados detalhadamente ou explicitados durante a projeção.
A não ser pelas cenas de assalto em si, a maior fonte de suspense e tensão dessa produção é a cruzada de Jatemme para punir quem ele considera responsável pelo assalto realizado por Harry e para acompanhar os passos de Veronica sem entrar em contato direto com ela. Frio, sádico e ameaçador, a mera presença do personagem na tela se torna uma fonte de tensão para o espectador. Isso se deve em grande parte à fantástica interpretação de Daniel Kaluuya, que consegue transmitir a frieza inerente ao personagem mesmo quando a violência está ocorrendo fora da tela.
Nada disso impede que a mensagem central do filme seja entregue com sucesso. Cada um dos personagens passa por sua própria jornada, seja tentando manter o status quo no qual estão aprisionados ou tentando escapar dele. Especificamente, as quatro mulheres precisam se livrar de homens abusivos, relacionamentos falidos, sentimentos de luto e pressões econômicas e sociais às quais elas já estavam praticamente acostumadas. Por mais que os ciclos históricos no qual elas estão presas sejam difíceis de quebrar, aceitá-los sem se rebelar apenas os tornariam mais fortes.