Crítica: Anora
Anora, EUA, 2024
Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
A intensidade de Anora faz do filme uma das melhores experiências cinematográficas do ano. Na superfície, há aqui uma mistura de thriller erótico com comédia, resultando em uma narrativa que parece combinar o que há de melhor em filmes como Joias Brutas e Uma Linda Mulher. Porém, esses elementos são utilizados não apenas como entretenimento, mas também para nos apresentar ao mundo e à jornada da protagonista, o que revela um drama pessoal mais próximo das tragédias de Shiva Baby e de Noites de Cabiria.
Semelhante à rotina das strippers do filme As Golpistas, o trabalho de Ani (Mikey Madison) consiste em realizar danças eróticas para os frequentadores de uma boate adulta, além de incentivá-los a gastar seu dinheiro no estabelecimento. Ela também pode atendê-los por fora, trabalhando como garota de programa. Assim, para ela o sexo acaba sendo muito mais uma fonte de renda e de aprovação do que necessariamente uma fonte de prazer.
Desde a cena inicial, Anora mostra essa realidade sem pudores e sem julgar as escolhas da protagonista e de suas colegas de trabalho. Para opositores desse tipo de “entretenimento”, essa pode ser uma abordagem problemática, que normaliza uma forma “degradante” de trabalho. Para trabalhadores sexuais que escolheram essa vida (diferente dos que foram obrigados a adotá-la), essa abordagem joga luz sobre uma realidade que muitas pessoas preferem fingir que não existe.
Polêmicas à parte, o filme está mais preocupado com a história de Cinderela de Ani. Depois de fechar um contrato de exclusividade com o jovem russo Ivan (Mark Eidelshtein), eles se casam impulsivamente e parecem estar prestes a viver um conto de fadas regado a sexo, drogas e gastos excessivos com itens e experiências de luxo.
Porém, a maior parte da segunda parte de Anora acompanha os esforços de Toros (Karren Karagulian), Garnick (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov) para anular o casamento. Enviados pela família de Ivan, eles passam a maior parte do filme tentando localizar o rapaz. São nas interações entre eles e Ani que a comédia se destaca. Obviamente, essas interações não seriam tão engraçadas se os três personagens fossem homens mais violentos.
O que acontece é que Ani realmente acredita estar vivendo uma improvável história de amor com Ivan, o que resolve qualquer tipo de dissonância cognitiva causada pela situação. Em seu sonho da vida real, ela tirou a sorte grande ao se apaixonar por um rico e excêntrico rapaz russo, estando disposta a mudar de vida e a fazer parte de sua família.
O que ela se nega a enxergar é que Ivan é apenas imaturo e narcisista, parecendo “sofrer” de affluenza. Assim como seus clientes na boate são seduzidos pela sua beleza e por sua agradável abordagem, ela não percebe que foi seduzida pelo luxo e pela riqueza da vida do rapaz. Por mais que ela insista na história de amor, a realidade é que ela está apaixonada por aquele estilo de vida.
Isso a leva inclusive a tentar ignorar quaisquer sentimentos autênticos que ela tenha por alguma outra pessoa. Se apaixonar de verdade por uma pessoa pobre não se encaixa em sua fantasia, e ela tenta se distanciar desse sentimento. Anora é justamente sobre como as fantasias de Ani são alimentadas e destruídas, deixa-a apenas com a frieza ou com a sinceridade da realidade.
Anora também dialoga com filmes como A Substância e Parasita, mostrando não apenas como Ani vive uma ilusão de poder graças a sua beleza mas também como ela não se importa com as implicações éticas de usufruir do poder aquisitivo de Ivan. De repente, toda aquela riqueza também é sua, e ela está muito mais preocupada em mantê-la do que em dividi-la com quem não teve tanta sorte quanto ela. Esse aspecto torna a sua queda ainda mais dolorosa.
Com um ritmo frenético e momentos extremamente divertidos, Anora também conta com uma incrível performance de Mikey Madison para levar o espectador por uma jornada de sexo, poder, sonhos e desilusão. Essa é uma narrativa barulhenta e quase épica, mas que também é inegavelmente íntima e profundamente reflexiva.