Crítica: Agentes do Caos
Agents of Chaos, EUA, 2020
Documentário da HBO reconta tudo o que se sabe sobre a interferência russa na eleição de 2016 dos EUA
★★★★☆
Agentes do Caos é um documentário de duas partes que vai fundo no que se sabe sobre a interferência russa na eleição presidencial americana de 2016. Ao longo das quatro horas de duração, o documentarista Alex Gibney explora os antecedentes e repassa os acontecimentos daquele ano, sempre com a ajuda de entrevistados que participaram da história. Investigadores privados, ex-funcionários do governo e até alguns dos investigados dão seus pontos de vista (e são confrontados) sobre o polêmico caso.
Assim como Privacidade Hackeada (crítica aqui), a produção não apresenta muitas novidades para quem acompanha o noticiário político dos EUA desde 2016, mas a organização do material e o nível de detalhamento tornam o filme um perfeito resumo desse caso. Além disso, as entrevistas dão à produção um quê de “bastidores do poder”, com figuras como Andrew McCabe (ex-vice-diretor do FBI), John Brennan (ex-diretor da CIA) e Celeste Wallander (ex-diretora do Conselho de Segurança Nacional do presidente Barack Obama) explicando o raciocínio por trás de certas decisões tomadas por eles mesmos e por outras autoridades.
Uma das conclusões a qual se chega é de que a comunidade de inteligência do país tinha uma visão clara dos múltiplos esforços que as agências russas GRU e SVR faziam para diminuir a confiança do eleitorado nas instituições, sejam eles por meio de manipulação nas redes sociais, invasão de sistemas de votação ou vazamento de emails dos Democratas.
Mas dois fatores principais limitavam a atuação das autoridades. O primeiro deles era a percepção de que se Obama tratasse o problema com a devida urgência, iria parecer que ele estava utilizando o peso da máquina estatal para beneficiar a candidata Hillary Clinton. O segundo era o fato de que a inteligência encontrada pelos investigadores não era sólida o suficiente para gerar acusações criminais. As ações da inteligência russa e o envolvimento de aliados do candidato Donald Trump eram óbvias, mas impossíveis de serem sustentadas em um tribunal.
Isso deixou as agências de segurança dos EUA de mãos atadas. Em condições normais, aquele tipo de inteligência seria considerada boa o suficiente para justificar tanto operações de contrainteligência quanto sansões econômicas, ou várias outras medidas possíveis para o poder executivo. Os investigadores também tentaram contar com a ajuda bipartidária do poder legislativo, mas os Republicanos não estavam interessados em impedir a atuação da inteligência russa. Ao fim, Agentes do Caos acaba se tornando uma crônica de uma das maiores derrotas dos EUA em seus mais de duzentos anos de História.
Gibney também chama atenção para como foi fácil para os russos ampliarem as divisões internas dos Estados Unidos. A “máquina de indignação” existente na Internet provê o ambiente perfeito para a semeação da discórdia, seja por motivos partidários, ideológicos ou raciais. Os trolls dos serviços russos incitavam o radicalismo não apenas em republicanos, mas também em democratas (inclusive internamente, entre facções do partido), criando um ambiente tóxico o suficiente para a inviabilização de qualquer diálogo.
Agentes do Caos é apenas mais um no crescente conjunto de filmes que tentam explicar os mistérios da “nova política” que surgiu com o referendo do Brexit e que havia sido “testada” na Ucrânia em 2014. Junto com esse longo documentário, filmes como Get Me Roger Stone (comentário aqui), Winter on Fire (comentário aqui), Brexit (comentário aqui), Privacidade Hackeada, Depois da Verdade (crítica aqui), Rede de Ódio (crítica aqui) e O Dilema das Redes (crítica aqui) formam um amplo e complexo retrato dessa nova realidade. As conexões e as implicações dela para o Brasil estão parcialmente documentadas no livro A Máquina do Ódio (resenha aqui).
Uma outra grande conclusão à qual Agentes do Caos chega é de que, enquanto parte dos políticos não estão interessados em resolver a situação, a comunidade de inteligência e outras agências de segurança simplesmente não sabem como fazê-lo. As armas utilizadas nesse novo tipo de guerra não são apenas cibernéticas, mas também psicológicas. Como convencer a população de que seus sentimentos estão sendo manipulados? Como explicar que sua autêntica e justificável indignação está sendo servindo aos interesses de agentes estrangeiros? Como reforçar o “sistema imunológico” da consciência coletiva e recuperar a saúde do tecido social?