Coronavírus: Gran Circus Brasileiro
Na tarde de 17 de dezembro de 1961, o incêndio do Gran Circus Norte-Americano consumiu a vida de 503 pessoas, a maioria crianças. Montado no centro de Niterói, o circo estava lotado, com aproximadamente 3 mil espectadores acompanhando o espetáculo. O fogo se espalhou rapidamente pela lona altamente inflamável e, em pouco mais de cinco minutos, tirou imediatamente a vida de 372 pessoas. Muitos dos sobreviventes morreriam nas horas seguintes.
O incêndio foi causado intencionalmente por Adílson Marcelino Alves, o “Dequinha”, e dois comparsas. Psicologicamente instável, Dequinha havia sido dispensado da força de trabalho temporária que montou o circo e impedido de entrar sem pagar no dia da estreia. O incêndio durante o espetáculo seria o seu ato de vingança. E assim, o que era para ser um impulsivo ato de sabotagem se transformaria em um assassinato em massa. Naquela tarde de domingo, o ressentimento e a inconsequência de uma única pessoa resultaria em uma das maiores tragédias já ocorridas no país.
O perfil de Dequinha lembra o de muitas figuras negacionistas durante a pandemia de COVID-19. Cegos por uma mistura de ressentimento e egocentrismo, uma parcela significativa da população, incluindo vários líderes políticos e religiosos, segue agindo de forma inconsequente e irracional. Seus atos maximizam o número de mortos e infectados, além de colaborarem para estender o tempo de duração da pandemia. Mesmo diante de evidências científicas e ultrapassada a marca dos 300 mil mortos, eles preferem ignorar tanto a realidade da situação quanto as orientações de epidemiologistas.
Mas o descaso com vida humana não é nenhuma novidade no Brasil. O país já teve, pelo menos, duas situações que se configuram como genocídio: os extermínios de povos indígenas e dos negros sequestrados na África e escravizados nas minas e plantações locais. Há também casos menos conhecidos, como o chamado holocausto brasileiro no Hospital Colônia de Barbacena, a mortandade causada pela seca no Nordeste e as cenas de terror absoluto caudadas pela pandemia de 1918 no Rio de Janeiro.
No Nordeste, a Grande Seca, que durou de 1877 à 1879, deixou entre 400 mil e 500 mil mortos na região atingida, além de provocar uma diáspora da população local para outras partes do país. A situação, que deixou parte do Nordeste brasileiro sem chuvas e praticamente inabitável por três anos, foi agravada pelo espalhamento de doenças, especialmente a varíola. A resposta do governo imperial foi diligente, mas não o suficiente para evitar a tragédia.
Uma nova seca atingiria a região em 1915, resultando nos primeiros currais do governo, que eram campos de concentração para os flagelados. A estratégia seria usada novamente em 1932, dessa vez provocada não apenas por fatores climáticos, mas também por questões políticas e sociais. A criação dessas instalações foi a “solução” encontrada pelos governos e elites locais para evitar que a população pobre e desesperada inundasse os centros urbanos mais desenvolvidos, como a cidade de Fortaleza. Um incontável número de mortes ocorreu nesses lugares, deixando apenas os relatos das condições sub-humanas de vida e dos enterros em valas coletivas.
A pandemia de gripe de 1918 (também conhecida como Gripe Espanhola) durou três anos e deixou oficialmente 35 mil mortos no Brasil, total que equivale a 0,12% da população do país na época, que era de 29.485.000 pessoas. Com a população atual de 210 milhões de pessoas, 0,12% representaria 252.000 mortes. Durante a pandemia de COVID-19, esse número de mortes foi atingido em fevereiro de 2021, apenas um ano após a chegada da doença no país. Sob esse ponto de vista, a atual pandemia já está sendo pior que a de 1918.
Porém, olhando-se para a cidade do Rio de Janeiro, vê-se que ainda pode ficar pior. Das 35 mil mortes entre 1918 e o final de 1920, 14 mil ocorreram apenas no Rio, cuja população era de 910.710 habitantes. Ou seja, na época, 1,5% da população da capital do país veio a óbito por causa da pandemia. Agora que a cidade possui 6,7 milhões de habitantes, isso significaria 100 mil pessoas mortas apenas no município. Já 1,5% da população do país equivale a mais de 3 milhões de pessoas.
Esses números, tanto os históricos quanto os hipotéticos, não dão a real dimensão das tragédias que podem ser causadas por uma pandemia. Para tal, essa matéria recorre ao relato do escritor Pedro Nava, que estava em sua adolescência quando a gripe atingiu o Rio de Janeiro:
De acordo com o escritor Pedro Nava, “o espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”. O próprio Pedro Nava, então com quinze anos, descreve uma cena de terror: uma criança esfomeada, chupando os peitos da mãe morta, já em decomposição.
Uma manchete da Gazeta de Notícias declarava o Rio “um vasto hospital”. Já os hospitais em si não tinham leitos e foram fechados para visitas, numa tentativa de evitar qualquer contágio. Casas funerárias não davam conta de seu serviço, e faltava madeira para caixões. Com medo de serem infectados, as pessoas jogavam os cadáveres de seus familiares pelas ruas, na frente de suas casas, para serem recolhidos ao cemitério mais próximo, atraindo todo tipo de pragas. Pedro Nava conta: “Na minha rua, da janela, se via um oceano de cadáveres”.
Urubus e cães se alimentavam dos cadáveres apodrecidos. “Lembro-me bem quando minha mãezinha foi obrigada a jogar no meio da rua os corpos do meu tio, seu irmão mais novo que ela havia criado com tanta dedicação e amor, e de meu irmão mais velho. Depois disso ela nunca mais foi a mesma. Ficou tomada de uma melancolia que não melhorava, nada conseguia fazê-la sorrir”, conta Pedro Nava no livro “Chão de Ferro“.
Em 1918, a pandemia também foi parcialmente recebida com descrença e ridicularização, seguida da recusa do uso de máscaras e do apelo a remédios milagrosos. Tanto naquela época quanto hoje, muitas pessoas contribuíram entusiasticamente para o próprio extermínio. Apesar de agora termos as vacinas desenvolvidas em tempo recorde, a situação ainda pode piorar graças ao surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2, potencializadas pela livre circulação que a doença encontra entre os negacionistas.
Durante várias décadas, estudantes e estudiosos se perguntaram como o povo alemão pôde permitir o extermínio de judeus e de outras minorias durante o Holocausto. O comportamento de parte da população brasileira durante a pandemia de COVID-19 responde facilmente a essa pergunta.