Crítica: Drive My Car
Doraibu mai kâ, Japão, 2021
Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes
★★★★★
O espectador pode até se intimidar com as três horas de duração de Drive My Car, mas o diretor Ryûsuke Hamaguchi as preenche de forma altamente satisfatória. A narrativa deliberadamente lenta jamais se torna um problema, pois mesmo quando não há muita coisa acontecendo ainda é possível aproveitar as belezas das paisagens naturais, das cenas urbanas e das estradas sendo percorridas. De uma forma ou de outra, esse é um filme que está sempre em movimento, tanto na história principal quanto nas histórias que estão sendo contadas dentro dela.
Superficialmente, é possível dividir Drive My Car em três grandes atos. Há uma longa introdução que mostra um recorte da vida do casal formado pelo ator de teatro Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) e pela roteirista de TV Oto Kafuku (Reika Kirishima); há a trabalhosa montagem de uma peça, durante a qual Yusuke conhece a motorista Misaki Watari (Misaki Watari); e há uma longa e introspectiva viagem durante a qual o filme entra completamente no modo road movie. Mas o mais relevante é o que está acontecendo sob a superfície.
Em grande parte, o filme é sobre a negação de Yusuke em reconhecer o que há de errado em sua vida. Durante a introdução, Oto tenta lhe mostrar por meio de histórias e por meio de ações que as coisas não estão tão bem assim entre eles. Mas toda vez que isso se torna óbvio, ele se recolhe e prefere fingir que está tudo normal. Ele finge que não flagrou uma traição; e finge que não se lembra da história sobre a lampreia que escolheu viver presa em uma pedra mas que torce para que alguém a liberte daquela escolha.
A realidade da situação é que nenhum dois estava disposto a tomar uma atitude. Enquanto ele tenta sufocar os problemas e manter uma falsa normalidade, ela jamais comunica sua insatisfação de forma clara e direta, preferindo deixar pistas em histórias ou incitar Yusuke a promover uma ruptura. É como se ela deixasse para ele toda a responsabilidade em relação ao futuro do relacionamento, sem querer tomar o primeiro passo na direção de um rompimento. Na prática, ela já tomou esse “primeiro passo” várias vezes, mas de formas ambíguas ou enigmáticas.
Entra então a montagem da peça Tio Vânia. O material havia ficado pesado demais para Yusuke interpretar, pois o texto de Tchekhov o obrigava a trazer à tona tudo aquilo o que ele tentava negar. Como diretor, ele até tenta causar esse mesmo efeito no jovem ator Koshi Takatsuki (Masaki Okada), talvez como forma de vingança, mas o resultado não é bem o que ele esperava. Durante esse processo, a motorista Misaki se torna uma presença intrigante em sua vida, provavelmente porque ele sente que não precisa esconder nada dela.
O que Yusuke e Misaki têm em comum são sentimentos de luto e culpa que eles se negam a processar, e ambos utilizam a direção para evitar isso. Enquanto ela dirigiu para o mais longe possível de sua cidade natal, ele preferiu ficar dirigindo sem rumo no dia em que Oto finalmente deu sinais de que iria trazer os problemas à tona. Essa é a grande jornada de Drive My Car: quando os conhecemos, os dois personagens dirigem para não ter que lidar com a dor e com suas pendências emocionais; quando o filme termina, eles já lidaram com elas e dirigem para seguir em frente com suas vidas.
Essa cura emocional é significativamente auxiliada pela peça Tio Vânia, na qual vários personagens são atormentados por vidas marcadas pelo sofrimento. Porém, há uma estranha (ou proposital) contradição na forma como Drive My Car utiliza a obra. Uma das cenas finais do filme é o monólogo final da peça, no qual a personagem Sonya tenta consolar o tio dizendo que um dia eles encontrarão Deus e finalmente poderão descansar no paraíso.
No filme, a cena tem um tom quase otimista, já que também mostra Yusuke voltando a atuar. Na peça, esse é um final inegavelmente pessimista. Em uma cena anterior, Sonya havia convencido o tio a não cometer suicídio, mas, no monólogo final, é justamente ela quem está dizendo que o sofrimento dele só acabará no pós-vida. Numa tentativa de sinalizar que dias melhores virão, ela acaba reforçando a ideia que ele tinha anteriormente, de que a única saída é a morte. O final de Drive My Car vai em outra direção, dando a entender que Yusuke e Misaki ajudaram um ao outro a lidar com a dor e a seguir em frente.
Com histórias dentro da história, Drive My Car lembra filmes como Acima das Nuvens e Animais Noturnos, que também mostram personagens cujas vidas são afetadas pelo (ou afetam o) processo criativo. Já o islandês Um Dia Muito Claro é o que melhor se aproxima dos temas de luto e negação que marcam o personagem Yusuke. Porém, Drive My Car está além de qualquer comparação, adotando uma linguagem tão única quanto intrincada para contar uma bela história sobre culpa e auto-aceitação.