Não Olhe Para Cima: 7 Temas Abordados no Filme (com Explicação)
* Contém SPOILERS do filme Não Olhe Para Cima
Independente de quem gostou ou não da comédia Não Olhe Para Cima, o filme trata de temas extremamente relevantes para a atualidade. Eis aqui sete dos assuntos satirizados no filme.
1. Negação da realidade
Uma vez que a descoberta de um asteroide que pode acabar com a vida na Terra não se encaixa no que ela quer acreditar, a presidente Orlean (Meryl Streep) prefere simplesmente ignorar a situação. Essa também foi a reação de muitas empresas e governos quando confrontadas com as realidades do aquecimento global e da pandemia de COVID-19. Porém, assim como o asteroide destruidor, esses não são problemas que nós podemos apenas ignorar e esperar que eles se resolvam sozinhos.
Para evitar emoções negativas e se livrarem da dissonância cognitiva, muitas pessoas escolhem acreditar que esses fenômenos não são tão graves quanto os especialistas alertam, preferindo contar com a sorte (ou com proteção divina) ao invés de tomarem medidas para lidar com a situação.
2. Presidente mais preocupada com sua popularidade e com sua família
A questão do asteroide também não representaria nenhuma vantagem política para a presidente Orlean. De forma semelhante a presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, ela trata a presidência como um “negócio de família”, mantendo seu filho James (Jonah Hill) como um funcionário de alto escalão. Todas as suas ações são orientadas a conseguir mais poder, mais popularidade ou mais vantagens para os familiares e para aliados próximos.
No caso de Trump, o papel de “filha presidencial” era o de Ivanka Trump, além de seu marido Jared Kushner. No caso de Bolsonaro, é a atuação de Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro que se destaca nesse sentido.
3. Contenção da informação
Depois que percebem que a presidente Orlean vai simplesmente ignorar a ameaça do asteroide, os cientistas Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) resolvem eles mesmos divulgar suas descobertas para o público. Porém, o escritório da presidência aciona o FBI para prender os pesquisadores e fazê-los assinar um acordo de não-divulgação sobre suas descobertas.
Na vida real, não é preciso ser tão “dramático”, pois os governos podem contar com apagões de dados e com a criação de falsas controvérsias sobre os assuntos. Como já escrevi aqui:
Assim como no caso de alguns políticos e empresários durante a pandemia, as petrolíferas preferiram “investir” em desinformação, a ponto de contratar pseudo-cientistas inescrupulosos para jogar dúvidas sobre as verdadeiras descobertas científicas. Uma vez que os “cientistas” pagos para discordar publicavam suas mentiras, as empresas as utilizavam para justificar seu posicionamento, tipicamente dizendo que “não há consenso científico sobre o tema”.
Essa mesma estratégia foi utilizada por diferentes tipos de negacionistas ao longo da pandemia, seja os que defendem o uso de medicamentos sem eficácia comprovada como “curas” para a doença ou seja os defendem que as vacinas são prejudiciais para a saúde.
4. Trivialização de temas sérios
Além da ação do FBI, a presidente Orlean também pôde contar com a lógica da economia da atenção, fazendo com que uma ameaça existencial para a humanidade precise lutar pela atenção do público, concorrendo contra memes e fofocas sobre celebridades. Para muitas pessoas, o asteroide que vinha em direção ao planeta Terra era apenas mais um assunto em seus feeds de redes sociais como Twitter e Instagram, que são projetadas para monopolizar a atenção do usuário (como mostrado no documentário O Dilema das Redes). Algo semelhante ocorreu no início da pandemia de COVID-19 e vem ocorrendo há décadas em relação ao aquecimento global.
Muitas pessoas só passaram a acreditar na COVID-19 quando ela chegou perto de casa, enquanto os efeitos do aquecimento global já começaram a aparecer por meio de eventos climáticos extremos, como as enchentes na Alemanha e na Bahia. Ainda assim, parte das autoridades e da população ainda dará um jeito de dizer que nada disso é real e que o que está acontecendo não é o que está acontecendo.
5. Politização de ameaças reais
Uma das formas de manter parte da população em uma realidade paralela é associando o problema real a um posicionamento político, criando um ambiente de “nós contra eles”. No caso do filme, enquanto uma campanha de conscientização tenta incentivar as pessoas a simplesmente olharem para cima e verem o asteroide que se aproxima, a presidente Orlean e seus apoiadores criam a campanha “Não Olhe Para Cima”, incentivando as pessoas a simplesmente ignorarem o objeto que está prestes a aniquilar a humanidade.
É interessante notar que os apoiadores do “Não Olhe Para Cima” ficam muito entusiasmados e se consideram grandes “rebeldes” por não concordarem com as conclusões científicas. Algo semelhante ocorre tanto em relação ao aquecimento global quanto em relação à COVID-19, com as pessoas considerando a diminuição da poluição atmosférica e a adoção de medidas de proteção contra o coronavírus como ataques a suas liberdades individuais.
6. Militarismo deslocado
Quando lidar com o problema do asteroide finalmente se torna politicamente vantajoso, a presidente Orlean aprova uma missão espacial para tentar destruir a ameaça. O detalhe é que essa missão é desnecessariamente tripulada, colocando o militar Benedict Drask (Ron Perlman) em uma viagem suicida apenas para dar ao público um “herói” que se sacrificou em nome do planeta. Nos momentos finais do filme, é possível ver o mesmo militar apenas de roupão e tentando atirar no asteroide com uma metralhadora e uma pistola.
Em determinado ponto da pandemia de COVID-19, o presidente Bolsonaro e outras autoridades defenderam que era preciso “enfrentar” o vírus, sem se “acovardar”, como se a pandemia fosse um exército invasor ou algo parecido. Como já escrevi aqui:
Ao “enfrentar o vírus” participando de aglomerações, deixando de usar máscaras e não seguindo outras medidas de prevenção, o que as pessoas estão fazendo é equivalente a “ajudar o inimigo”. Esse tipo de “enfrentamento” apenas provê mais ambientes (ou seja, mais pessoas saudáveis) nos quais o vírus pode se reproduzir e a partir dos quais ele pode se espalhar. Ao tomar essas atitudes, esses equivocados “combatentes” apenas ajudam a pandemia a se prolongar e a causar mais perdas de vida.
7. Interesses financeiros
Talvez a decisão mais bizarra tomada pela presidente Orlean foi a de cancelar a missão de destruição do asteroide e apostar todas suas fichas no excêntrico bilionário Peter Isherwell (Mark Rylance). Ao invés de ter múltiplos planos (inclusive o de Isherwell) para impedir a destruição, o país fica dependente de um único e mirabolante plano para partir o asteroide e extrair os metais preciosos existentes nele. Sua justificativa é que a riqueza proveniente desses metais acabaria com a miséria no mundo, como se o problema da desigualdade social fosse causado pela escassez de recursos e não pela concentração deles nas mãos de poucas pessoas.
No mundo real, sobram exemplos de decisões semelhantes. No Brasil, o presidente Bolsonaro preferiu defender remédios milagrosos do que incentivar os cidadãos a se protegerem da contaminação pelo coronavírus. Quando as primeiras vacinas começaram a ser comercializadas pelos fabricantes, seu governo não teve pressa para garantir as doses necessárias e continuou insistindo em remédios sem eficácia comprovada. Atualmente, não se fala mais nesses remédios, mas seu governo faz o máximo possível para dificultar a vacinação de crianças.
Quanto ao aquecimento global, basta dizer que a maior “delegação” presente na recente Conferência sobre as Mudanças Climáticas era a formada por representantes da indústria do petróleo. Apesar de não ser uma delegação oficial, nenhum país enviou tantos representantes quanto essas empresas. Dentre os países, a maior delegação era a brasileira, que não permitiu a participação de ONGs ambientalistas mas incluiu representantes da indústria e do agronegócio, além de alguns familiares das autoridades presentes.
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Em suma, vale o que eu já disse na minha crítica de Não Olhe Para Cima:
A mensagem em si é bem importante, utilizando a metáfora de um asteroide em rota de colisão com a Terra para representar os perigos oferecidos pelo aquecimento global, e mostrando que muitas pessoas só vão acreditar na ameaça quando ela se tornar absurdamente óbvia e quando for tarde demais para evitá-la. Porém, se a atual pandemia de COVID-19 nos ensina algo, é que provavelmente muitas pessoas morreriam devido aos efeitos do impacto do asteroide sem acreditar que o asteroide é real.