Crítica: Titane
Titane, França/Bélgica, 2021
Titane mergulha na humana loucura de um metal com alta resistência e alta biocompatibilidade
★★★★☆
Uma serial killer já não consegue conter seus impulsos assassinos e assume a identidade de outra pessoa para tentar escapar da polícia. Essa descrição da premissa de Titane é apenas mais uma forma equivocada de tentar explicar o que se passa nesse chocante e intenso drama de terror. Se o objetivo da diretora Julia Ducournau era fazer um filme completamente imprevisível e inegavelmente desagradável, ela o atingiu com muito louvor, resultando em uma trama que desconstrói de forma visceral algumas concepções sobre nossos corpos e nossas emoções.
A protagonista Alexia (Agathe Rousselle) está desde a primeira cena do filme tentando obter a atenção de seu frio e apático pai (Bertrand Bonello), que continua tratando-a da mesma forma até a idade adulta. Ela só consegue a atenção de uma figura paternal quando conhece Vincent (Vincent Lindon), um homem marcado pelo trauma e por uma frágil masculinidade. Ele precisa de alguém para preencher um específico vazio que existe em sua vida, levando Alexia a se encaixar emocionalmente no papel.
Enquanto tenta permanecer fora do radar da polícia, ela já está em uma prisão. Seu corpo está passando por transformações sobre as quais ela não tem controle e que ela não quer aceitar. Para piorar, esse corpo também precisa corresponder às expectativas das pessoas ao seu redor. O que a diretora faz aqui é explorar o corpo humano como uma máquina orgânica e com gênero, e que nem sempre faz o que seu operador (ou passageiro) gostaria. Em Raw, Ducournau fez uma exploração semelhante, mas objetificando o corpo humano não como máquina mas sim como fonte de nutrientes.
E se os impulsos da protagonista de Raw eram no sentido de consumir os corpos, os da protagonista de Titane está mais no sentido de destruí-los, resultando em algumas intensas e violentas cenas de assassinato. As outras cenas “chocantes” do filme vêm do fato de que Alexia desenvolveu uma forte atração sexual pela máquina que a machucou quando pequena: um automóvel. Inclusive, ela utiliza os automóveis para manifestar sua sexualidade em dois momentos bem distintos. O primeiro é um sucesso de público, já que se encaixa perfeitamente em fantasias eróticas de homens heterossexuais; o segundo, por sua vez, causa apenas estranhamento e desconforto entre os homens presentes.
Titane também pode ser descrito como um thriller erótico, mas não na linha do recente Observadores (crítica aqui), por exemplo. A nudez e o sexo servem muito menos como fonte de erotismo e muito mais como forma de expor os frios detalhes da “máquina” que está sendo analisada, como se fossem engrenagens e óleo de motor. Isso também resulta em alguns desagradáveis momentos do mais puro body horror, lembrando o tempo inteiro uma das cenas mais chocantes do terror brasileiro As Boas Maneiras (crítica aqui).
Apesar de tudo isso, Titane é um filme sobre o amor e a aceitação que podem florescer mesmo nas mais improváveis circunstâncias. Ainda que possua muitos elementos exagerados, a narrativa é muito mais convencional que a de filmes experimentais como Holy Motors e Clímax. Pode-se dizer que a narrativa aqui tem características opostas às de O Fio Invisível, filme que possui uma narrativa altamente estilizada mas com pouca densidade; Titane, por outro lado, conta uma densa e imprevisível história da forma mais direta possível.
Por fim, é importante dizer que nada do que está escrito nos parágrafos anteriores é capaz de preparar o leitor para a experiência que é assistir a Titane. Há cenas que o espectador vai querer rever e cenas que ele vai querer desver. Nem todo mundo vai querer terminar de assisti-lo, mas esse filme foi feito justamente para quem já conhece o estilo e está disposto a ir até o final.