Round 6 e os Mestres do Capitalismo
Imagine que um professor, em uma sala de aula qualquer, informe a sua turma que uma das avaliações do semestre será na forma de um trabalho que pode ser feito individualmente ou em grupos de até três pessoas. Porém, para incentivar que os alunos se dediquem a fazer os melhores trabalhos possíveis, ele também informa que os projetos serão avaliados como em uma competição. O melhor trabalho terá nota 10, o segundo melhor terá 9,5, e assim por diante. Dessa forma, é criada uma escassez de notas altas e os alunos precisarão competir por elas.
Porém, um dos estudantes levanta a mão e afirma que, levando-se em conta o número de alunos, esse sistema garante que vários grupos ficarão com notas abaixo da média, por mais que seus trabalhos não sejam tão ruins assim. O professor responde dizendo que, da mesma forma, várias equipes talvez recebam notas altas mesmo que seus trabalhos não sejam tão bons assim, pois só precisam ser melhores do que os dos colegas. O aluno insiste que o sistema não é justo, mas, ao olhar ao seu redor, ele percebe que seus colegas estão mais preocupados em formar equipes que têm boas chances de ficar no topo do que em questionar o formato da avaliação.
O sucesso mundial de Round 6 mostra o quanto os espectadores de várias partes do mundo estão interessados nesses tipos de dilemas morais e sociais. O cinema da Coreia do Sul já havia produzido outros sucessos com a mesma temática, como o aclamado Parasita (crítica aqui) e o cult Expresso do Amanhã (crítica aqui), que deu origem a uma série americana. Temas semelhantes também foram explorados em filmes como Bacurau (crítica aqui) e A Caçada, além de ter algumas semelhanças com a minissérie Os Favoritos de Midas.
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O que Round 6 e essas outras produções fazem é expor as injustiças das sociedades capitalistas de forma clara e cativante. Os tipos de comportamento que a população em geral considera irracionais, imorais ou criminosos são contextualizados como resultado de um sistema inerentemente injusto. Não é razoável esperar que pessoas desesperadas e sem perspectivas de futuro tomem decisões de altíssima qualidade, pois elas estão muito mais focadas na própria sobrevivência do que em questões morais ou sociais.
Isso parece contraditório, já que a maior parte dos sobreviventes do primeiro jogo de Round 6 decide voltar para a competição, na qual podem perder suas vidas. Porém, essa decisão só não faz sentido para o espectador que está assistindo a esses eventos no conforto do lar; para as pessoas que estão em situações absurdamente desesperadoras, o que faz ou não sentido obedece a outras regras. Assim como no caso das loterias, a possibilidade de mudar de vida ao ganhar uma quantia absurda de dinheiro leva as pessoas a ignorarem as baixíssimas probabilidades de realmente serem premiadas.
Em Round 6, é interessante notar que os mestres do jogo o consideram muito mais justo do que a vida fora dele. Na concepção do Líder (Lee Byung-hun), o mundo lá fora é cheio de injustiças, enquanto o jogo é um ambiente no qual todos os participantes têm chances iguais. Porém, isso não é verdade, já que cada jogo deixa uma parte dos participantes em desvantagem. Por exemplo, quem saiu por último no primeiro jogo ficou em desvantagem, assim como as pessoas que escolheram as formas mais difíceis no segundo jogo. No terceiro, as equipes com pessoas mais leves e mais fracas também tinham menos chances de ganhar, enquanto no penúltimo as pessoas que saíram na frente tinham chances mínimas de chegarem ao fim.
Toda essa situação serve como uma perfeita metáfora para a vida no mundo real. Ao invés de tentar alcançar alguma forma de divisão igualitária de recursos, as sociedades capitalistas (pelo menos, as mais liberais) tentam atingir formas igualitárias de competição pelos recursos, sempre recorrendo à escassez como justificativa. Assim como em Round 6, para muitas pessoas esse é um jogo brutal e desumano que se esconde sob uma fachada de ordem e merecimento, ou sob uma fachada de civilização.
Mestres do Capitalismo
No caso da competição em sala de aula, os alunos poderiam exigir tanto do professor quanto da instituição de ensino uma forma mais justa de avaliação. Porém, a possibilidade de vitória é atraente demais para muitos deles. Ao invés de mais um trabalho “chato”, eles agora têm a possibilidade de ter um pequeno momento de glória. Na teoria, a meta é receber uma nota acima da média. Porém, o verdadeiro sonho é chegar ao topo do pódio e receber como recompensa não apenas a nota máxima mas também a liberação dos neurotransmissores responsáveis pela sensação de prazer.
O solitário aluno que reclamou do método de avaliação agora percebe que, por mais que a ideia tenha sido proposta pelo professor, são os seus competitivos colegas que a mantém viável.
Assim como as outras produções citadas anteriormente, Round 6 apresenta heróis e vilões. Há os jogadores que tentam ajudar aos outros e os jogadores que estão interessados apenas no prêmio em dinheiro, custe o que custar. Porém, uma vez que mesmo os comportamentos mais tóxicos podem ser rastreados até traumas sofridos no passado, a escolha de vilões é muito mais um mecanismo narrativo do que uma realidade moral. A trama induz o espectador a torcer por certos personagens, mas se a narrativa adotasse algum outro ponto de vista, essa torcida poderia ser bem diferente.
No fim das contas, o ideal seria que as pessoas não fossem colocadas em situações nas quais elas precisam fazer as escolhas mostradas na série, sejam aquelas feitas dentro do jogo ou a decisão de voltar ou não para ele. É por isso que não existe como o resultado do jogo ser realmente justo. Por que uma única pessoa deveria ter acesso a tanto dinheiro enquanto as outras são brutalmente assassinadas? Onde está a justiça nessa situação?
Talvez os vilões sejam os poderosos homens que financiaram o jogo, chamados de VIPs, e ofereceram essas cruéis escolhas aos jogadores. Porém, é possível argumentar que mesmo esses personagens estão “perdidos” nessa situação. Assim como o Líder é o vencedor de uma das edições anteriores, os misteriosos magnatas são os vencedores da competição que está ocorrendo aqui fora. Como estão no topo do pódio, eles tendem a acreditar que o jogo é justo e que eles chegaram onde estão apenas por mérito próprio, desconsiderando todas as outras variáveis. Isso não é um sinal de que são vilões, mas sim de que são seres humanos.
Um exemplo disso é como o perturbador prazer que eles sentem ao assistir ao jogo não é lá muito diferente do prazer que as pessoas normais sentem ao assistir participantes de reality shows competindo por prêmios na televisão. As situações pelas quais esses competidores passam nem se comparam com o sofrimento dos personagens de Round 6, mas esses programas também utilizam a instabilidade e o sofrimento humano como fonte de entretenimento. E se eles continuam fazendo sucesso ano após ano, não é apenas porque as pessoas continuam assistindo e se divertindo, mas também porque muitas delas sonham em ser um dos competidores.
Os espectadores se mantêm emocionalmente distantes dos dramas pessoais dos participantes de reality shows da mesma forma que os VIPs se mantêm emocionalmente distantes da dramática luta entre os dois últimos competidores da série. Eles sabem que a luta é importante, mas depois dela irão voltar para suas vidas normais. Do ponto de vista dos competidores, aquela é uma briga tão épica quanto pessoal, e nada será como antes; para os VIPs, aqueles são os dois últimos cavalos correndo na pista, ou os dois últimos cães brigando pelos ossos que lhes foram lançados.
É possível dizer que, tanto em Round 6 quanto na vida real, o jogo se sustenta pelos traumas que ele causa nos jogadores. A partir de determinado ponto, as pessoas já fizeram tantos sacrifícios e já tomaram atitudes tão questionáveis que tudo o que lhes resta é tentar justificar essas escolhas por meio de uma grande vitória. Na série, mesmo possuindo a opção de desistir, a maioria dos participantes acredita que já foi longe demais. Ganhando ou perdendo, eles precisam ir até o fim para justificar as escolhas que já fizeram. Se desistirem e saírem sem ganhos, nada do que fizeram terá valido a pena.
Isso gera um ciclo vicioso de decisões ruins que precisam ser justificadas e que vão criando situações cada vez mais complicadas. Diante disso, a moralidade humana vai sendo corroída e as pessoas vão sendo reduzidas até seu instinto mais básico: o de autopreservação.
Percebendo que a forma de avaliação não será alterada, o aluno que a questionou se vê obrigado a participar como todos os outros. Porém, o tempo que ele gastou questionando o formato o deixou em desvantagem. As equipes mais fortes já foram formadas e os colegas com quem ele normalmente colabora já não estão disponíveis. Ele poderia entrar em uma das equipes mais fracas e ajudar os colegas que normalmente não vão bem nesse tipo de trabalho, mas prefere não correr o risco. Por mais difícil que seja, ele escolhe realizar o trabalho individualmente, pois considera mais importante garantir sua própria nota do que tentar ajudar quem tem dificuldade no assunto.