Crítica: Negação

Denial, EUA/Reino Unido, 2016



Drama apresenta uma história que ecoa nos tempos atuais

★★★☆☆


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Apesar de não apresentar nada muito estimulante em termos narrativos ou cinematográficos em geral, Negação relata uma história real que ecoa nos mais diversos níveis o momento político atualmente vivido pelo mundo. Tivesse sido lançado há 10 anos, diríamos que seu tema central é o Holocausto e como provar que ele realmente aconteceu. Porém, aos olhos de um espectador de 2017, o filme trata do quão fácil é distorcer a verdade e provocar grandes movimentos políticos e/ou populares usando apenas palavras de ordem e argumentos vazios e inconsequentes.

Baseado no relato escrito pela própria protagonista (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), o filme mostra a batalha judicial travada entre Deborah E. Lipstadt (Rachel Weisz) e o negacionista do Holocausto David Irving (Timothy Spall), que acusou ela e a editora Penguin Books de difamação devido a trechos que falam sobre ele no livro Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory, de autoria de Lipstadt. Pra piorar a situação da escritora, Irving abriu o processo na Inglaterra, cujo sistema judicial coloca o ônus da prova na parte acusada, e não no acusador. Em outras palavras, ela e sua equipe de advogados tinham que provar em juízo que o que ela escreveu sobre Irving era apenas a realidade, e não difamação.

negaçãoIrving via e apresentava o julgamento como uma luta entre Davi e Golias, na qual ele, sem advogados e representando a si próprio na corte, era o Davi, enquanto o lado de Lipstadt e da editora, com uma grande equipe de advogados paga por meio de angariação de fundos dentre os interessados na causa (principalmente, judeus americanos), era o Golias.

Uma única e curta cena ainda na primeira metade do filme deixa claro o quanto Irving é guiado, acima de tudo, pelo próprio ego: para convencê-lo a abrir mão de um juri, o que seria desvantajoso para ele, a defesa de Lipstadt recorre a uma série de elogios ao trabalho e conhecimento de Irving, argumentando que seria demais pedir para que pessoas normais compreendam o assunto que ele levou uma vida inteira para dominar. Vaidoso, ele concorda e a decisão final sobre o julgamento fica a cargo de um único juiz, o que certamente diminui a eficácia de suas práticas manipuladoras.

É a partir justamente de um dos trechos questionados por Irving no livro de Lipstadt que se tem uma ideia melhor de seus métodos:

Irving é um dos mais perigosos porta-vozes do negacionismo do Holocausto. Conhecedor da evidência histórica, ele a distorce até que ela se adapte a suas inclinações ideológicas e objetivos políticos. Um homem convencido de que o grande declínio da Grã-Bretanha foi acelerado pela decisão de entrar em guerra contra a Alemanha, ele é muito hábil em pegar informações corretas e moldá-las para confirmar suas próprias conclusões. Uma resenha de seu recente livro, Churchill’s War, publicada no New York Review of Books, analisa corretamente sua prática de tratar as evidências de forma parcial. Ele exige “prova documental absoluta” quando o assunto é provar a culpa dos alemães, mas se baseia em evidências altamente circunstanciais para condenar os Aliados. Essa é uma descrição correta não apenas das táticas de Irving, mas das dos negacionistas em geral.

Entretanto, apesar de representarem os lados em oposição, o grande confronto apresentado nessa história não é entre Irving e Lipstadt, mas sim entre Irving e os advogados da defesa. Lipstadt acreditava que esse julgamento seria sua chance de erguer-se como uma grande defensora do povo judeu, mas essa chance lhe é roubada quando os advogados, frios e eficientes, decidem que não vão chamar nem ela nem sobreviventes do Holocausto para testemunhar, evitando tanto um confronto direto entre os pivôs do conflito quanto uma humilhação pública para os sobreviventes nas mãos do impiedoso Irving, que iria questionar e distorcer seus testemunhos a seu bel prazer. Deixar Lipstadt discutir com Irving em corte também significaria tirar o conflito do campo do rigor científico e levá-lo para o campo dos “argumentos convincentes”, especialidade de Irving.

Lipstadt demora a aceitar essa estratégia, mas, por fim, passa a confiar na equipe. Talvez, sob seu ponto de vista, o julgamento seria vencido por sua defesa apaixonada dos fatos históricos e pelos testemunhos emocionados dos sobreviventes dos campos de concentração, tal qual aconteceria se essa fosse uma peça de ficção de algum roteirista hollywoodiano. Entretanto, foi o trabalho exaustivo e minucioso da equipe de advogados que permitiu que os argumentos de Irving fossem, um por um, invalidados, até o ponto em que ele se encontrou encurralado em uma situação na qual não conseguiria ignorar as provas apresentadas ou escapar com sua ginástica argumentativa.

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A imagem final que temos de Irving é a de um homem que busca aceitação e reconhecimento a qualquer custo, deixando seu ego e narcisismo gigantescos tomarem todas suas decisões. Ele parece psicologicamente (ou mesmo patologicamente) incapaz de reconhecer os próprios erros, e sempre tenta encontrar um fator externo para justificar as próprias falhas ou imperfeições.

Esse comportamento revela, ao invés de auto-confiança, uma insegurança quase paralisadora, que precisa o tempo inteiro ser apaziguada com elogios e outras formas de aprovação externas. É intrigante perceber que ele é, apesar de tudo, uma pessoa frágil. É essa sua fragilidade que faz com que ele ataque de forma verbalmente violenta tudo e todos que não o respeitem. Esse personagem e suas inegáveis semelhanças com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump, é um dos fatores que tornam esse filme tão relevante para o atual mundo do “pós-verdade”.

Com um grande elenco e ótimas atuações, Negação é uma ótima pedida para quem se interessar pelos temas anteriormente mencionados, mas deve desagradar quem estiver atrás de uma grande experiência cinematográfica. A narrativa é apresentada de forma direta e quase documental, o que é apropriado para um filme que apresenta o triunfo de um trabalho científico, respeitoso com uma das maiores tragédias do século XX sobre a barata manipulação emocional e psicológica do antagonista.