Crítica: Mank
Mank, EUA, 2020
Cinema, política e notícias falsas: Mank conta a história de um homem que tentou fazer a diferença quando já era tarde demais
★★★★☆
Apesar de ser mais uma manifestação da obsessão de Hollywood por si própria, Mank também é um envolvente e eloquente drama sobre a vida de um homem que tentou fazer alguma diferença no sistema do qual ele fazia parte. A compreensão das consequências de sua conveniente apatia política sobre a vida de um amigo e sobre a trajetória dos EUA chega tarde demais, e a única coisa que lhe resta é tentar expor o homem que ele via no centro da trama. Como exposição, seu trabalho teve alcance limitado; mas como cinema, seu roteiro daria origem a um dos maiores clássicos da História da sétima arte: Cidadão Kane.
Não fica claro qual resultado o roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) esperava de sua obra prima, eternizada em película pelo jovem diretor Orson Welles (Tom Burke) e reverenciada até hoje. Que diferença faria expor a duplicidade e os fracassos pessoais de William Randolph Hearst (Charles Dance)? O magnata da imprensa marrom serviria como inspiração para o idealista Charles Foster Kane, um dos personagens mais conhecidos do cinema, enquanto sua jovem esposa Marion Davies (Amanda Seyfried) inspiraria Susan Alexander, segunda esposa e objeto de obsessão para Kane.
O humor e a metalinguagem (copiando parte da linguagem e do estilo de Cidadão Kane) fazem com que Mank lembre filmes como Oito e Meio, Ave, César! e Era Uma Vez em Hollywood (crítica aqui), apesar de ser menos profundo que o primeiro e bem mais profundo que os dois outros. Esse não é um dos trabalhos mais marcantes do diretor David Fincher, mas provavelmente vai impressionar cinéfilos e outros tipos de conhecedores da História da sétima arte. Para espectadores “normais”, talvez o filme não tenha tanto apelo assim.
Há também um certo apelo no aspecto político da produção. Por meio de flashbacks, fica claro que a Hollywood de Mank, durante os anos 1930, já possuía as sementes da Hollywood da Lista Negra. Enquanto os membros da classe artística e os trabalhadores de baixo nível são simpatizantes de ideias de esquerda, os executivos dos estúdios e seus financiadores obviamente tendem a ideias de direita. Com o objetivo de influenciar uma eleição presidencial, eles plantam as sementes da segunda ameaça vermelha recorrendo a mentiras e técnicas de manipulação que hoje seriam chamadas de fake news.
Tudo isso é mostrado em meio a melancólica e irremediável espiral de autodestruição à qual Mank se dedica, uma história que já havia ocorrido inúmeras vezes e que viria a se repetir inúmeras mais em diferente meios, artísticos ou não. Há até uma certa familiaridade com outros recentes sucessos da Netflix, como os dramas sobre enxadrismo O Gambito da Rainha e Partida Fria.
Mas Mank é um roteirista, e ele manifesta sua frustração, seu arrependimento e seu ressentimento por meio de um roteiro que colocaria seu nome na História. Seu relacionamento pessoal e conhecimento sobre Hearst e Davies, que o convidava regularmente para o Castelo de Hearst (que inspirou o Xanadu de Cidadão Kane), o colocavam na posição ideal para expor um influente homem de negócios que estava nas sombras da política dos EUA. A amizade com o casal provavelmente o deu uma visão única sobre a intimidade e as motivações dos dois. Isso era importante porque, ainda que seu objetivo não fosse atingir Davies, não havia como revelar o “funcionamento interno” de Hearst sem envolvê-la na história.
E Mank fez isso já sabendo de seu limitado impacto na história real. O Hearst de Mank deixa claro, por meio da “parábola do macaco do tocador de realejo“, que Mank não é o centro do universo. Mesmo se o roteirista parar de “dançar”, a música continuará tocando; e os negócios continuarão acontecendo, os filmes continuarão sendo feitos e o mundo continuará girando. Portanto, tudo o que Mank realmente podia fazer era contar uma história.
Mank pode não ter os mesmos atrativos que os trabalhos mais “violentos” de Fincher, mas ainda assim o diretor mostra que está em plena forma. O resultado é um filme fácil de assistir para quem se interessa pela História do cinema e razoavelmente suportável para quem não está tão interessado assim. O afiado roteiro e as ótimas atuações de todo o elenco (especialmente a de Oldman) oferecem um show à parte e são o suficiente para segurar a atenção do espectador.