Coronavírus: Incompetência Contagiosa


No documentário Totally Under Control (“totalmente sob controle”), os diretores Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger entrevistam figuras chaves da comunidade epidemiológica dos EUA que estiveram envolvidos na resposta inicial à pandemia de COVID-19. É a crônica de um fracasso que tinha tudo para não acontecer e mesmo assim foi materializado graças à negligência do governo do presidente Donald Trump, que se recusava a levar a sério as recomendações dos especialistas e promovia uma cultura geral de negacionismo tanto dentre seus subordinados quanto dentre a população em geral.

Além do mundialmente respeitado Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), o país já possuía um guia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos sobre como lidar com esse tipo de ameaça. Esse guia havia sido revisado durante um exercício nacional meses antes do início da pandemia e incluía um cenário muito parecido com o que realmente ocorreu. Inclusive, uma pandemia nos moldes da que vem ocorrendo em 2020 já era há algum tempo prevista por muitos epidemiologistas, a ponto das previsões de alguns deles nos últimos anos parecerem “profecias” agora. Não é por acidente que o filme Contágio, de 2011, mostre um cenário razoavelmente parecido com o atual.

O exercício executado apontava várias limitações na resposta dos EUA a uma crise desse tipo, mas pelo menos já se conhecia os problemas. Porém, esse conhecimento não foi utilizado pelos membros do governo Trump responsáveis pela resposta. A morosidade da administração combinada com um erro técnico cometido pelo CDC na produção de testes fez com que o mês de fevereiro fosse “perdido” no combate à doença, tendo repercussões que ainda estão se desenrolando.

Para deixar clara a ineficiência das autoridades dos EUA, o documentário compara a resposta do país com a exemplar resposta das autoridades da Coreia do Sul. No país asiático, os políticos deram carta branca para os epidemiologistas agirem o mais rápido possível e evitarem a necessidade de grandes esforços de isolamento social. Além de eliminar a burocracia para a produção de testes, o país fez uma agressiva operação de testagem da população, rastreio de possíveis infectados e isolamento dos casos confirmados. Consequentemente, a Coreia do Sul foi um dos primeiros países a conter o avanço da pandemia.

O negacionismo de Trump também teve consequências para o Brasil. O país ainda não tem um documentário como Totally Under Control, mas recentemente o ex-Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta lançou o livro Um Paciente Chamado Brasil, no qual fala sobre os bastidores de sua resposta à pandemia nos primeiros meses de 2020. Em entrevista recente para o programa Roda Viva, ele aponta que o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro foi reforçado depois de uma visita a Donald Trump nos EUA. A fatídica viagem para a Flórida parece ter unido o destino dos dois países, que são os líderes em número de mortos pela doença.

As respostas dos governos dos dois países tiveram vários outros paralelos: a politização das medidas de contenção do contágio; substituição de técnicos experientes por novatos ou completos amadores; política de redução de testagem para evitar o aumento do número de infectados (ou seja, parar de contar os infectados e fingir que está tudo bem); na falta de uma resposta centralizada, os estados passaram a competir entre si por insumos; promoção da cloroquina e outras drogas de forma indiscriminada. Além disso, depois que a gravidade da crise ficou inegável, tanto Trump quanto Bolsonaro tentaram se eximir de qualquer responsabilidade e jogar a culpa nos governadores dos estados.

As análises dos entrevistados em Totally Under Control e as do ex-ministro Mandetta convergem em vários pontos. Um dos principais diz respeito à cadeia mundial de produção e distribuição de insumos hospitalares. As autoridades brasileiras e as norte-americanas se surpreenderam quando perceberam que estavam dependentes da China para ter acesso a máscaras e outros equipamentos de proteção, já que as indústrias locais haviam sido substituídas pela importação dos produtos chineses. No momento de crise, a China priorizou o mercado interno e não o internacional.

São “detalhes” como esse que exigem que profissionais preparados lidem não apenas com a resposta a surtos, epidemias e pandemias, mas também com a preparação para eles. E essa é uma preparação que não envolve apenas a área da saúde, já que também envolve indústria, economia, transportes, etc. Enquanto países como Coreia do Sul, Vietnã e Nova Zelândia estão lidando muito bem com a situação, Brasil e EUA não passaram no teste que mencionei ainda em março no post sobre os deuses, as pragas e os homens.