Raised by Wolves: Ideias Divinas e Crenças Humanas
* Contém SPOILERS da série Raised by Wolves
Na mitologia romana, Rômulo e Remo eram irmãos gêmeos filhos do deus Marte. Como faziam parte da linha de sucessão do trono da cidade de Alba Longa, os irmão foram jogados em um rio por ordem de um rei usurpador. Entretanto, o cesto no qual estavam fica preso em uma das margens e eles passam um tempo sob os cuidados dos animais selvagens, inclusive de uma loba, que os amamenta. Posteriormente, eles virariam pastores e se envolveriam em uma trama para restaurar o verdadeiro rei de Alba Longa. Feito isso, os irmãos partem para fundar uma nova cidade, mas uma crescente divergência entre eles leva Rômulo a assassinar Remo. Rômulo então funda a cidade de Roma e dá início ao Império Romano.
Vários aspectos da trama de Raised by Wolves (“criados por lobos”) parecem inspirados no mito da fundação de Roma, que também envolve conflitos religiosos. A religião dos fanáticos da série, seguidores do deus Sol, toma emprestado o nome de uma antiga religião romana, o mitraísmo. É a guerra entre eles e fanáticos ateus que torna a Terra inabitável e leva os humanos sobreviventes a tentarem colonizar o planeta Kepler-22b. Obviamente, o conflito os segue até lá.
Os androides ateus Mãe (Amanda Collin) e Pai (Abubakar Salim) são os primeiros a chegar e a começar a colonizar o planeta, se tornando responsáveis pela criação de seis crianças. Porém, uma arca mitraica chega anos depois e muda completamente a realidade da dupla. A “custódia” das crianças se torna então motivo de disputa entre os androides ateus e os crentes mitraicos, representados especialmente pelo casal formado por Marcus (Travis Fimmel) e Sue (Niamh Algar), que não são exatamente quem parecem ser.
Apesar do visual arrojado e de algumas fantásticas cenas de ação, Raised by Wolves oferece uma experiência de natureza muito mais cerebral. A produção está mais interessada em explorar conceitos e ideias do que em prover um entretenimento de fácil engajamento. Isso a torna mais próxima da minissérie Devs (resenha aqui) do que do sucesso Game of Thrones, dificultando sua adoção pelo grande público. As referências utilizadas por ela são tantas e tão sutis que é preciso uma boa carga de conhecimento para realmente aproveitá-la.
E não se trata apenas de conhecimento do mundo real. As ideias exploradas na série já haviam sido parcialmente abordadas pelo diretor Ridley Scott nos filmes Prometheus e Alien: Covenant (crítica aqui), que são os dois últimos da franquia Alien. O criador Aaron Guzikowski claramente se inspirou no universo daquela franquia, e não seria uma surpresa se em algum momento ficar claro que Raised by Wolves também faz parte dela. Scott dirigiu os dois primeiros episódios da série, enquanto seu filho Luke Scott dirigiu mais três.
A ideia central explorada nos citados filmes de Ridley Scott é da busca da humanidade por seus criadores, que é refletida no androide David (Michael Fassbender). Tanto David quanto os humanos tentam se sentir especiais buscando a aprovação dos seres que os criaram, reservando para eles uma adoração tão intensa que quase se converte em religiosidade. Eles tentam impressionar os alienígenas criadores com o intuito se verem merecedores de seu amor e de sua atenção, mas o plano não sai como esperado. Os criadores os tratam com desdém e David reage violentamente.
Raised by Wolves vai além e tenta explorar as várias facetas da relação das pessoas com a religiosidade. Mãe e Pai se esforçam para que suas crianças cresçam ateias, mas, mesmo antes da chegada dos mitraicos, o pequeno Campion (Winta McGrath) já questionava o dogmatismo ateu dos androides. Diante de acontecimentos que não conseguia entender e que os androides não conseguiam explicar, ele tenta recorrer a “forças superiores” para recuperar algum senso de entendimento e controle da situação.
Posteriormente, mesmo Mãe é afetada por um certo “fervor” religioso. Depois que recupera certas memórias e passa a se lembrar do homem que os enviou naquela missão, ela começa a “adorá-lo” e a ver cada novo desenvolvimento como parte do plano de seu “criador”. Se não consegue explicar algo, ela simplesmente pressupõe que aquilo ocorreu porque seu criador assim o quis. A situação só piora depois que alguém se aproveita de sua “fé” para alcançar benefícios próprios.
Quem também alcança a fé é Marcus. Ele e Sue na verdade são Caleb (Jack Hawkins) e Mary (Sienna Guillory), dois soldados ateus que matam e assumem as identidades de dois mitraicos para conseguirem sair da Terra. Porém, depois que uma voz inexplicável o dá instruções e o ajuda a se tornar o novo líder mitraico, Marcus/Caleb entra em uma espiral de paranoia e complexo de messias que o transforma no mais perigoso dos fanáticos religiosos. Assim como os fanáticos que antes desprezava, ele passa a interpretar quaisquer acontecimentos como sinais divinos e a justificar seus atos de violência como a vontade de Sol.
A mesma voz misteriosa fala com Paul (Felix Jamieson), o pequeno filho de Marcus e Sue. Assim como Marcus/Caleb, ele passa a agir sob os comandos daquela voz e se considera um privilegiado por ter sido escolhido por Sol para fazer sua vontade divina. Paul, Marcus e Mãe possuem algo em comum: os três personagens se consideram escolhidos; eles por estarem escutando a voz de Sol e ela por estar carregando em seu ventre a criança que seu criador havia planejado. O problema é que nada disso corresponde à realidade.
No último episódio da primeira temporada de Raised by Wolves (sugestivamente intitulado “O início”) fica claro que tanto as vozes e aparições escutadas e vistas pelos personagens, quanto os “milagres” ocorridos ao longo da ação, quanto a inexplicável gravidez de Mãe são obras de uma inteligência desconhecida. A entidade não revelada conseguiu não apenas colocar vozes nas cabeças dos personagens mas também invadir os sistemas da arca para convencer Mãe a utilizar sua avançada tecnologia para “dar à luz” a um animal completamente desconhecido para os novos habitantes do planeta. Pior, o novo animal possui algumas das habilidades dela, como a capacidade de voar.
O que a série pretende com isso é explorar a terceira Lei de Clarke: qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia. Por desconhecerem e não estarem preparados para as habilidades da entidade que habita o planeta, os personagens dão as próprias explicações para os eventos e se colocam no centro dos acontecimentos. Eles são facilmente manipulados ao interpretar as ordens escutadas como a vontade de um criador benevolente, quando na verdade se tratava apenas de uma entidade mundana e altamente avançada.
No caminho até essas revelações, Raised by Wolves explora várias outras ideias e situações relativas à religião, ao ateísmo e à psicologia humana. Mais que isso, a série é um fantástico, perturbador e impiedoso trabalho de ficção científica, misturando drama, suspense e terror de forma nunca antes vista. No aspecto tecnológico, os grandes destaques são os androides do tipo Necromancer, como Mãe, que são armas de destruição em massa capazes de manipular tanto ondas sonoras quanto forças gravitacionais para destruir seus inimigos, resultando em cenas tão belas quanto aterradoras.
Para as possíveis próximas temporadas (a segunda já foi confirmada), resta ver se a relação entre Campion e Paul realmente vai evoluir para uma fraternidade semelhante a de Rômulo e Remo. Mas antes de erguerem uma nova civilização, eles precisarão passar por uma verdadeira luta pela sobrevivência diante de formas de vida que ainda são um mistério para a humanidade.
E farão isso em meio a muita iconografia religiosa. O planeta e seus dois habitantes iniciais (Mãe e Pai) representam versões distorcidas do Jardim do Éden e de Adão e Eva. Para todos os efeitos, Mãe foi seduzida e engravidada por uma serpente, cometendo um “pecado” que muda tudo e que coloca a vida de todos em risco. Além disso, a posição de ataque adotada pelos Necromancers em muito se assemelha a de uma pessoa crucificada.