Crítica: Coringa
Joker, EUA, 2019
Apesar da fantástica atuação de Phoenix, Coringa se leva a sério demais para um filme sobre o “palhaço do crime”. Why so serious?
★★★☆☆
Com Coringa, o diretor Todd Phillips perde a oportunidade de dar ao icônico personagem uma história de origem tão caótica, divertida e subversiva quanto ele merece. O filme funciona razoavelmente bem como comentário social e estudo de personagem, mas a trama é mais complexa e dramática do que o necessário, falhando em refletir tanto o lado criminoso quanto o lado anarquista do vilão. Se o Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) desse filme está destinado a se tornar uma versão realmente assustadora do Coringa, isso não é mostrado na projeção.
Comparar esse Coringa com aquele imortalizado por Christopher Nolan e Heath Ledger é tão injusto quanto inevitável. A versão do personagem apresentada em Batman: O Cavaleiro das Trevas estabeleceu um novo patamar de qualidade em sua representação, a ponto da releitura de Jared Leto em Esquadrão Suicida (2016) ter sido antecipadamente rejeitada pelos fãs. A versão entregue por Phillips e Phoenix ainda é digna do nome, mas ela deixa de lado alguns dos melhores aspectos do Coringa definitivo de Ledger.
Aquele Coringa era um verdadeiro enigma. Ele não parecia ser um “monstro” criado pela sociedade, mas sim uma criatura tirada dos pesadelos mais sombrios do Cavaleiro das Trevas. Sempre que suas motivações pareciam claras, novas e imprevisíveis facetas de sua loucura vinham à tona. Capaz de manipular as fraquezas humanas e de trazer à tona o que há de pior nas pessoas, ele queria apenas se divertir por meio do caos e do terror, fazendo do mundo a sua imagem e semelhança.
Aquele era um Coringa que parecia ser uma autêntica manifestação de um mal primordial, tão antigo quanto implacável. Tão ilógico quanto inflexível. Tão niilista quanto fanático. A violência física que ele cometia era apenas um meio para infringir violência psicológica sobre Gotham City e seus defensores. E ele via humor nas profundezas mais sombrias da condição humana.
Essa nova versão tira o que há de enigmático e tenta racionalizar (ou mesmo justificar) as ações do personagem. O humor negro e o terror psicológico cedem bastante espaço para um previsível e cansativo melodrama, o que deixa as motivações do personagem à beira da rebeldia adolescente. Depois de fazê-lo passar por uma longa série de dificuldades e humilhações, o roteiro apresenta Arthur Fleck como um bom rapaz que finalmente perde a cabeça e está apenas dando o troco nas pessoas malvadas que o maltrataram (e que não gostavam de suas piadas).
A ideia de tornar o personagem um fruto de problemas mentais, traumas de infância e condição social é bem interessante, mas já foi abordada de forma mais original e inovadora no filme Eu, Olga Hepnarová e em séries como Bates Motel e Legion (sobre a qual escrevi aqui e aqui). Além disso, filmes como Psicopata Americano, Sangue Negro, Perfume: A História de um Assassino e O Abutre lidam de forma muito mais subversiva e desafiadora com seus vilões-protagonistas, inclusive no quesito humor negro.
Mesmo a subtrama de convulsão social nos moldes da Revolução Francesa (ou da Primavera Árabe, ou das Jornadas de Junho no Brasil) já foi melhor explorada em filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, Nós e Expresso do Amanhã.
Uma outra ideia interessante foi usar o filme Taxi Driver como clara inspiração. As muitas referências feitas ao clássico de Martin Scorcese (que chegou a estar envolvido na produção, mas acabou se afastando) se encaixam perfeitamente na proposta desse Coringa. A narrativa tenta emular aquele filme da mesma forma que Logan emula o faroeste Os Imperdoáveis, mas aqui o resultado é bem menos satisfatório.
Ao tentar equilibrar todas essas interessantes ideias, Phillips não consegue manter um foco claro ou uma linha de raciocínio coesa durante a narrativa. É como se ele tivesse muito do que reclamar mas nenhuma ideia para compartilhar. Isso se reflete no protagonista, que canaliza suas frustrações pessoais para uma difusa rebeldia contra o proverbial “tudo isso que tá aí”.
É a assombrosa atuação de Joaquin Phoenix que salva a produção. Sua perturbadora e hipnotizante performance, que parece ser uma expansão do seu premiado trabalho no calmo e brutal Você Nunca Esteve Realmente Aqui, captura a atenção do público a ponto das falhas citadas serem facilmente ignoradas; o que mais importa para o espectador é ver o quão longe Phoenix irá na cena seguinte e como ele irá nos surpreender novamente. É uma pena que só é possível vê-lo interpretando o “verdadeiro” Coringa em algumas cenas pontuais, já que o personagem passa a maior parte da projeção à beira do choro e mergulhado em autopiedade.
Coringa poderia ser uma sombria e energética comédia de ação e humor negro, mas as risadas são escassas e é o drama que predomina. Mesmo depois que sua transformação está completa, o personagem jamais se diverte tanto quanto suas versões anteriores. Aqui, sua risada exagerada é muito mais um sinal de fragilidade emocional do que de loucura niilista. Ao se levar a sério demais, o roteiro acaba tirando parte do brilho do personagem.