Crítica: Aquarius

Aquarius, Brasil, 2016



Filme é uma longa reflexão sobre a sociedade brasileira e sobre a passagem do tempo

★★★★☆


De forma calma e contemplativa, Aquarius segue um pouco da rotina de Clara (Sonia Braga), viúva de 65 anos e mãe de três filhos adultos, e mostra os problemas com os quais ela tem que lidar nesse estágio da sua vida. Última moradora do edifício que dá título ao longa, ela se recusa a vender seu apartamento, ao contrário de todos seus ex-vizinhos. A construtora interessada, que quer derrubar o prédio para construir um condomínio moderno, faz uma proposta generosa e, depois de ouvir vários “nãos” de Clara, parte para práticas agressivas e anti-éticas para retirá-la de lá.

O desfecho desse conflito é o ponto menos importante de Aquarius, apesar de que é esse conflito que insere um pouco de suspense na narrativa. O suspense deixa o filme mais palatável que o trabalho anterior do diretor Kleber Mendonça Filho, o aclamado O Som ao Redor, que se limitava a expor a calma e normal rotina de uma rua de classe média de Recife, deixando a trama em camadas abaixo da superfície. Aqui o conflito está em tela, sempre deixando o espectador se perguntando qual será o próximo passo das partes envolvidas.

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Mas o conflito com a construtora é apenas uma consequência dos questionamentos internos e externos sofridos pela protagonista. Em sua idade, sua relação com as coisas que ela sempre gostou e que fazem parte dela (sejam os filhos, seja o sexo, seja seu status de classe média) parece estar sendo questionada. Isso é o mesmo que negar-lhe a identidade ou até a existência. O novo chega empurrando-lhe para o lado como se fosse apenas mais uma coisa ocupando espaço. A construtora é apenas uma manifestação mais concreta dessas forças. Mas Clara resiste, seja à construtora, seja à ter que se comportar como uma velhinha, seja ao próprio tempo.

Mas um dos questionamentos que a pegam de surpresa é sobre seu status social. Em primeiro lugar, esse questionamento é feito pela própria narrativa, que mostra Clara como uma típica senhora de classe média, com seu apartamento, sua empregada, suas caminhadas na praia, suas sessões de terapia em grupo ao ar livre. Ao olhar fotos antigas em álbuns com os familiares, eles veem uma antiga empregada da família, sempre cortada ou aparecendo ao fundo, e se lembram de vários detalhes sobre ela, exceto seu nome. Negra e toda vestida de branco, é como se seu fantasma ainda andasse pelos corredores do apartamento. Quando a empregada atual os interrompe para mostrar-lhes uma foto de seu falecido filho, uma clima pesado e desconfortável se estabelece na sala, como se aquela mulher estivesse invadindo o momento familiar, ainda que ela seja considerada “praticamente parte da família”.

Clara recebe esse questionamento diretamente quando tenta desqualificar Diego (Humberto Carrão), o funcionário da construtora responsável pelo projeto do novo condomínio. Ela tenta expô-lo como apenas mais um rapaz mimado que se acha especial por ter feito um MBA no exterior e nunca teve que batalhar por nada. Ele prontamente questiona se ela teve que batalhar para ter aquele apartamento ou se havia herdado dos pais, ao que ela não tem resposta. Por sua vez, Diego é bem educado e determinado, e está disposto a mostrar serviço em seu primeiro projeto na construtora. Não parece ser uma má pessoa, mas também não parece se sensibilizar com o fator humano em seu empreendimento e trata Clara como um obstáculo que ele precisa superar em sua trajetória, além de ser, no mínimo, conivente com as práticas quase criminosas aplicadas pela empresa.

O trabalho de câmeras e a reconstrução de época são notáveis em Aquarius. A cena de abertura se passa na Recife de 1980, cuidadosamente reconstruída até os mínimos detalhes. Além da cenografia dessa cena inicial, o trabalho de câmera durante todo o filme parece homenagear técnicas usadas nos anos 70, o que deixa algumas cenas atuais com um ar meio vintage. Tudo isso mostra o refinamento técnico do diretor, além de colaborar para a sensação de nostalgia causada em diversos momentos do filme. Esses momentos, acompanhados de belas canções do passado, são simplesmente deliciosos de assistir e transpiram sofisticação. A ótima trilha sonora inclui Roberto Carlos, Maria Bethania, Queen, dentre outros, e é uma viagem no tempo por si só.

Existem muitos outros aspectos que poderiam ser discutidos sobre Aquarius, mas um dos mais marcantes é a contraposição entre nossos dois passados: o que lembramos e o que as outras pessoas se lembram. Na mencionada cena inicial, os filhos de Clara, ainda pequenos, fazem uma singela homenagem a aniversariante do dia, Tia Lucia (Thaia Perez), que está completando 70 anos. Eles leem para ela uma pequena carta que recorda as conquistas pessoais e profissionais da tia, enquanto ela se distrai ao olhar para uma cômoda no canto da sala e se lembra dos tórridos momentos de sexo que ela e seu namorado protagonizaram sobre o móvel. Afinal, por mais que o tempo tenha passado, aqueles momentos também são parte de quem ela é.