Os Sombrios Voos do Condor
Qual solidão é mais solitária que a desconfiança?
– George Eliot
Os grandes destaques da primeira temporada de Condor são suas ideias e seus personagens. Enquanto a trama segue a fórmula estabelecida pelo livro e pelo filme nos quais ela é baseada, as reflexões e os dilemas levantados oferecem algo mais ousado e inquietante para o espectador. Para isso, essa adaptação também mergulha no mundo da moralidade cinzenta da CIA (Agência Central de Inteligência) e das decisões que seus agentes tomam em nome da segurança da população americana. Mas o quão longe eles estão dispostos a ir? O quão longe é longe demais?
A morte é a solução para todos os problemas. Sem homem, sem problema.
– Josef Stalin
No livro Seis Dias do Condor, escrito por James Grady e publicado em 1974, o analista da CIA Ronald Malcolm trabalha em uma divisão clandestina que analisa livros, jornais e revistas em busca não apenas de possíveis vazamentos, mas também de novos métodos e ideias a serem aplicados em operações reais. Porém, por trabalhar em um prédio longe da sede da Agência, sua equipe se torna um alvo fácil: ao voltar do almoço em um dia como qualquer outro, Malcolm encontra todos os seus colegas assassinados.
Uma vez que percebe que não pode confiar na Agência, ele sequestra uma mulher, Wendy Ross, e se refugia em sua casa. Depois de dias de perseguição, ele descobre que sua divisão estava sendo usada por um grupo de dentro da CIA para importar drogas ilícitas do Laos. Com o esquema prestes a ser descoberto, o grupo resolveu dar um fim violento e definitivo ao departamento de Malcolm.
Para ser um bom patriota, um indivíduo deve se tornar inimigo do resto da humanidade.
– Voltaire
O livro foi adaptado para o cinema em 1975, mas o nome dos personagens e outros detalhes foram alterados: em Três Dias do Condor, depois de encontrar os corpos de seus colegas de trabalho e de sofrer uma tentativa de assassinato, o protagonista Joe Turner (Robert Redford) sequestra a advogada Kathy Hale (Faye Dunaway). Com sua ajuda, e enquanto tenta sobreviver ao meticuloso assassino profissional G. Joubert (Max von Sydow), Turner descobre que um grupo de dentro da Agência ordenou seu assassinato e de seus colegas para encobrir um plano de invasão do Oriente Médio, que tinha como objetivo final o controle dos campos de petróleo da região.
As pessoas estão presas na História e a História está presa nelas.
– James Baldwin
A série recém lançada usa tanto o livro quanto o filme como referências, mas traz a história para o século XXI: Joe Turner (Max Irons) é um programador que trabalha em uma divisão da CIA focada em pensar “fora da caixa” e desenvolver métodos e ferramentas para lidar com ameaças novas e antigas. Depois que um de seus algoritmos ajuda a Agência a impedir um ataque terrorista, a startup de fachada (chamada IEP) na qual ele e seus colegas trabalham é atacada por dois assassinos. Assim como nos originais, ele é o único sobrevivente e mais tarde sequestra e conquista a confiança da advogada Kathy Hale (Katherine Cunningham).
É melhor um diamante com um defeito do que uma pedra sem nenhum.
– Confúcio
Esse novo Turner também é um idealista. Enquanto seu melhor amigo, e também funcionário da Agência, Sam Barber (Kristoffer Polaha) vê o mundo como um “nós contra eles”, Turner acredita que precisamos superar esse comportamento tribal. Mas proteger o próprio lado é uma justificativa mais do que suficiente para Barber, talvez a única que importe. Diante do cinismo do colega, Turner ironiza: “Bem, talvez moralmente falando nós não evoluímos nada, apenas terceirizamos a imoralidade para pessoas como você.”
Não existe isso de paranoia. Seus piores medos podem se tornar realidade a qualquer momento.
– Hunter S. Thompson
Ao longo dos episódios, é revelado que o ataque interrompido pela CIA e a chacina na IEP representam apenas o começo de algo muito pior. Turner e seu tio, o mestre-espião Bob Partridge (William Hurt), descobrem que um grupo de extremistas de matriz nacionalista-cristã que opera de dentro da Agência deu início a um elaborado plano para atacar de forma devastadora o mundo muçulmano.
O medo e a paranoia que conduzem as ações dos radicais refletem muitos dos chavões usados por grupos de extrema-direita nos EUA hoje, como a narrativa de “conflito de civilizações” e a ideia de “guerra racial”. As motivações das versões anteriores desse grupo também encontram respaldo na realidade.
Enquanto as ações militares dos EUA no Oriente Médio continuam sendo difíceis de justificar, a CIA já foi acusada de facilitar o tráfico de drogas (ver comentário sobre o filme O Mensageiro aqui) e a venda ilegal de armas para financiar grupos paramilitares na Nicarágua. Mesmo a infiltração de extremistas em agências de segurança tem base em casos reais: um documento revelado no início de 2017 mostra que o FBI tem políticas específicas para lidar com extremistas (nacionalistas e supremacistas brancos) infiltrados em forças policiais, além de ter um relatório de 2006 específico sobre o tema.
Talvez uma das operações clandestinas mais conhecidas seja a chamada Operação Condor (mais detalhes na versão em inglês). Revelada após a descoberta do Arquivo do Terror no Paraguai, a operação foi uma aliança entre ditaduras militares da América do Sul e a CIA para reagir à influência soviética e reprimir movimentos de esquerda e outros grupos de oposição política. Com apoio financeiro e treinamento dos EUA, o aparato repressivo montado foi responsável pela tortura e morte não apenas de guerrilheiros revolucionários, mas também de jornalistas, empresários e militares que ousaram se opor aos regimes.
Achei-me em uma floresta escura, onde o caminho correto estava perdido.
– Dante Alighieri
Um dos soldados rasos do plano terrorista montado pelos extremistas é Nathan Fowler (Brendan Fraser), responsável pela coordenação da operação. Sua personalidade reflete as características de muitos dos radicias do século XXI: inseguro e frustrado, ele é um burocrata em busca de glória. Enquanto seu irmão morreu como herói de guerra, Nathan nunca teve aptidão para o combate, o que faz com que seu pai, um ex-militar, o considere um fracasso. Enquanto tenta ser uma influência positiva para sua filha pré-adolescente, da qual tem a guarda compartilhada, Fowler vê na operação uma chance de mostrar para si próprio e para seu pai que ele também é capaz de defender a pátria do “inimigo” externo para o qual eles transferem seu medos e inseguranças.
Ser ou não ser não é uma questão de conciliação. Ou você é, ou você não é.
– Golda Meir
Talvez a personagem mais exagerada da série seja a assassina Gabrielle Joubert (Leem Lubany), uma fria e psicopata mercenária que não deve lealdade a ninguém e apenas gosta do que faz. Ela funciona menos como um reflexo de pessoas reais e mais como uma manifestação física da morte em si: uma vez que ela chega, não existe sorte ou negociação capazes de impedir que ela elimine o seu alvo. Sua incrível eficácia pode se tornar irritante para o espectador, mas jamais previsível. Ninguém está seguro diante dela e, a partir de determinado ponto, sua mera presença em tela é suficiente para aumentar a tensão do espectador.
A vida, a vida é a lavoura, e a morte é a colheita correspondente.
– Walt Whitman
Apesar do foco no suspense e na ação, Condor encontra tempo o suficiente para explorar os dramas e as motivações pessoais desses e de outros personagens. Um dos principais temas é a forma como vários deles lidam com a perda de parceiros ou outros entes queridos, especialmente quando isso ocorre de forma violenta e mal explicada. As dúvidas e a paranoia herdadas pelos que ficaram os fazem abrir os olhos para aspectos de suas próprias vidas que, anteriormente, eles podiam se dar ao luxo de ignorar.
Quando a confiança morre, a desconfiança floresce.
– Sófocles
O título de cada um dos 10 episódios da primeira temporada de Condor é um trecho de alguma conhecida citação, refletindo sempre a temática geral do episódio ou a situação específica de algum dos personagens que nele aparecem. Mais do que espionagem e conspirações terroristas, a série trata das escolhas que as pessoas fazem com base em suas crenças e em como elas traçam a linha entre o certo e o errado. Cada um de nós se considera o herói de nossas próprias histórias, o que não exclui a possibilidade de sermos os vilões de várias outras.