Crítica: Dia Zero
Zero Day, EUA, 2025
Netflix · Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes
★★★★☆
Com apenas seis episódios, Dia Zero é um denso thriller político que explora várias das vulnerabilidades às quais as nossas sociedades estão expostas. Apesar do acontecimento no centro da trama ser um grande ciberataque, a história também expõe fragilidades legais, institucionais e humanas em uma narrativa cheia de suspense. Indo além do entretenimento, a minissérie tenta alertar para a importância de se manter o estado de direito e a ordem democrática.
Na área de cibersegurança, uma vulnerabilidade de dia zero é uma fragilidade em um sistema de software que é conhecida pela comunidade e para a qual ainda não há uma correção ou formas de mitigar o problema. O termo faz referência ao fato de que os responsáveis pelo software têm “zero dias” para prover uma solução. Ou seja, a vulnerabilidade precisa ser corrigida o mais rápido possível.
Na minissérie, muitas vulnerabilidades de software como essa são exploradas durante um mega ciberataque nos EUA. Com duração de apenas um minuto, o grande apagão de eletricidade e de comunicações deixa mais de três mil mortos ao redor do país. Nesse curto intervalo de tempo, aviões caíram, trens descarrilharam e sistemas de suporte de vida foram desligados. A trama parece exagerada, mas cenários como esse já foram explorados em documentários como Zero Days e A Arma Perfeita.
Mas esse é apenas o primeiro tipo de vulnerabilidade mostrado na minissérie. Para encontrar os culpados e tranquilizar a população, a presidente Evelyn Mitchell (Angela Bassett) cria uma comissão de investigação com poderes que não precisam respeitar o estado de direito e a constituição do país. É para evitar que tal instrumento caia nas mãos de pessoas com ambições políticas que o ex-presidente George Mullen (Robert De Niro) aceita ser o líder da investigação.
Porém, apesar de suas boas intenções, a pressão colocada sobre ele e alguns inexplicáveis problemas neurológicos o levam a tomar decisões cada vez mais paranoicas e arbitrárias. Nesse sentido, Dia Zero nos lembra de que o poder sem limites amplia e potencializa quaisquer defeitos ou limitações que seus detentores possuam, maximizando seus efeitos negativos sobre as vidas de uma grande quantidade de pessoas.
Dessa forma, a trama concretiza a famosa frase do historiador John Dalberg-Acton: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre péssimos homens.”
A situação de Mullen é apenas uma das formas pelas quais a minissérie realça a relevância das fragilidades humanas no mundo da política. A partir de determinado ponto, vários personagens começam a suspeitar de que Mullen está sendo vítima de uma arma neurológica, o que estaria afetando tanto a sua concentração quanto o seu julgamento.
Esse aspecto de Dia Zero é uma clara referência à Síndrome de Havana. A condição, apresentada por diplomatas americanos em Cuba e no Canadá, se caracteriza como um conjunto de sintomas neurológicos que podem ou não terem sido causados por uma arma desconhecida. Por enquanto, a possibilidade de isso ser resultado de uma arma foi descartada.
As fragilidades humanas também se destacam na subtrama de Roger Carlson (Jesse Plemons), que é o principal assessor de Mullen na investigação. Devido a seus questionáveis contatos e negociatas com o setor privado, ele se torna vítima de kompromat, que é a prática de chantagear pessoas com o uso de materiais (fotos, vídeos, documentos, etc.) comprometedores coletados secretamente.
O termo esteve em voga nos anos de 2016 e 2017, quando se suspeitava que o presidente Donald Trump estivesse se alinhando com Vladimir Putin por estar sendo vítima de algum tipo de chantagem.
A própria reação da população em geral faz parte dos fatores humanos abordados em Dia Zero. As pessoas querem respostas rápidas e definitivas sobre o ataque, ficando frustradas quando o governo não consegue providenciá-las. Parte das pessoas recorre então a teorias da conspiração como as perpetuadas pelo influencer Evan Green (Dan Stevens), que aprende do jeito difícil a verdadeira diferença entre o estado de direito e um estado de exceção.
Ao fim, a trama revela que o ataque foi orquestrado por indivíduos que representam uma ampla gama de interesses, envolvendo adversários internacionais, poderosos membros do setor privado dos EUA e uma parte da classe política do país. A principal motivação dada por alguns dos líderes não é estranha para quem se lembra da motivação do grande vilão de Watchmen.
A ideia seria unificar a população em torno de uma ameaça em comum, de forma que as pessoas coloquem suas diferenças de lado e colaborem umas com as outras. É algo que talvez possa ser chamado de “extremismo de centro”. Além disso, os inconstitucionais poderes da comissão de investigação seriam utilizados para “consertar” o país e “fazer o que precisa ser feito”.
Ideias como essas são comuns na vida real, com muitos golpes de estado sendo defendidos por pessoas que estão cegadas pela ideologia e que se consideram no direito de ter um poder quase absoluto. São ideias tão imaturas quando perigosas, que geralmente resultam nas piores pessoas possíveis chegando no topo do poder, onde não terão que se preocupar com a legalidade ou com as consequências de suas ações.
No Brasil, essas “fantasias” de autoritarismo já resultaram em uma ditadura militar e em uma tentativa de golpe em 2023, que teve o envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Na América Latina, é comum que esses impulsos golpistas sejam canalizados pelas forças militares, sejam nas ditaduras de direita de décadas atrás (no Brasil, na Argentina, no Chile, etc.) ou nas atuais ditaduras de esquerda da Venezuela e da Nicarágua.
Cenários nos quais as forças militares tomam o poder também são explorados em filmes como Nova York Sitiada e Nova Ordem.
Vale notar que, na vida real, a capacidade dos EUA de dar uma resposta semelhante à mostrada na série está sendo significativamente diminuída pelas demissões em massa realizadas por Donald Trump e Elon Musk (notícias aqui, aqui e aqui). No geral, essas medidas correm o risco de diminuir significativamente a capacidade do país de se defender de ataques não convencionais.
Paradoxalmente, Dia Zero tenta fazer a mesma coisa que um dos vilões diz ser seu objetivo: chamar a atenção das pessoas para os problemas reais do país, ao invés de perderem tempo com brigas e polarizações que estão longe das principais preocupações da humanidade como um todo. Obviamente, a minissérie faz isso sem matar milhares de pessoas e sem atentar contra o estado de direito.