Crítica: Guerra Civil
Civil War, EUA, 2024
Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes
★★★★☆
Dentre os muitos ângulos sob os quais a história de Guerra Civil poderia ser contada, o diretor Alex Garland escolhe apontar suas lentes para as lógicas da guerra e do jornalismo de guerra no campo de batalha. O resultado é um interessante comentário sobre ética jornalística, traçado sobre o pano de fundo de um chocante conflito armado. De certa forma, Garland tenta apagar a fronteira entre a história jornalística, que pode vista como (ou transformada em) espetáculo, e o pesadelo da realidade em uma zona de conflito.
O principal ponto de vista adotado pela narrativa é o da fotojornalista Lee (Kirsten Dunst), uma veterana correspondente de guerra que parece inabalável. Porém, há um aspecto dessa cobertura para o qual ela não estava preparada: dessa vez, a violência da guerra não está afetando algum país “exótico” do outro lado do mundo. São seus compatriotas, suas instituições e seus símbolos nacionais que estão sendo destruídos por uma violência sem sentido.
Assim como ela prefere apagar a foto do corpo de um amigo que acabou de morrer, talvez ela prefira não tratar a efetiva dissolução de seu país como um mero fato jornalístico.
Para fazer seu trabalho, ela precisa manter um certo distanciamento emocional dos conflitos que está cobrindo. Isso é possível quando ela está trabalhando no Oriente Médio, na África ou na América Central, por exemplo. Mas quando esse conflito ocorre em locais que representam a unidade nacional dos EUA, esse desprendimento emocional é posto à prova. Diante de uma cercada e derrotada Casa Branca, ela finalmente sente todo o peso psicológico daqueles acontecimentos.
Algo semelhante pode ser dito sobre as populações de países mais estáveis, como as potências ocidentais e parte da América Latina. Por exemplo, para brasileiros, os atuais conflitos na Palestina, na Ucrânia, no Sudão, no Iêmen, na Síria e na Etiópia não são nada mais do que histórias contadas no noticiário. É por isso que parte das pessoas romantizam ou não se preocupam com as implicações de revoluções, golpes de estado ou conflitos separatistas.
A trama de Guerra Civil também mostra outros aspectos da realidade de países que estão passando por conflitos armados ou outros tipos de instabilidades (como as mostradas no filme Nova Ordem). Um exemplo disso é como os fornecimentos de eletricidade e de água potável são comprometidos pelo conflito nos EUA. As infraestruturas de combustíveis fósseis (gás, gasolina, diesel, etc.), moeda fiduciária (o dólar americano é significativamente desvalorizado) e telecomunicações também perdem qualquer vestígio de confiabilidade e consistência nessa situação, aprofundando uma crise humanitária.
Outro protagonista de Guerra Civil é Joel (Wagner Moura), que nos lembra de um outro tipo de correspondente de guerra. Enquanto Lee possui vários paralelos com a jornalista americana Marie Colvin (cuja história foi contada no filme Uma Guerra Pessoal), Joel está mais próximo do francês Paul Marchand, cuja cobertura da Guerra da Bósnia foi dramatizada no filme Simpatia pelo Diabo.
Tanto Joel quanto Marchand (que escutava Rolling Stones enquanto dirigia sob a mira de snipers) estão em busca de diversão e adrenalina durante a cobertura do conflito armado. Enquanto o dilema moral de Lee tem suas nuances, as implicações éticas dessa busca por aventura em meio a uma situação marcada pela morte e pelo sofrimento são bem óbvias. É nesse espírito que Guerra Civil contrasta a brutalidade de algumas cenas com músicas animadas e de veia mais pop, como Say no Go e Rocket USA.
Ainda assim, é graças a profissionais como esses que temos as imagens de pessoas comuns tentando ir trabalhar e fazer compras sob o fogo de franco-atiradores na Bósnia em 1995 (vídeos aqui e aqui). Atualmente, o trabalho de fotojornalistas revelam as realidades dos conflitos na Faixa de Gaza (aqui e aqui), na Ucrânia e no Sudão.
Ao fim, Guerra Civil também é a história da perda da inocência de Jessie (Cailee Spaeny). Ela inicialmente idealiza a profissão de fotojornalista, mas acaba se tornando tão emocionalmente distante quanto a veterana Lee. A diferença é que, enquanto Lee mantinha um distanciamento emocional de conflitos em locais remotos, Jessie se torna emocionalmente insensível a conflitos em seu próprio país, talvez dando origem a uma nova geração de correspondentes de guerra.
Muitos espectadores esperavam que Guerra Civil fosse um outro tipo de filme, talvez mais focado na ação, talvez mais focado em comentários políticos. O que o filme ressalta é que, independente das motivações ou dos aspectos ideológicos por trás do conflito, uma vez que a guerra é iniciada os combatentes dos dois lados terão apenas um objetivo: derrotar o inimigo. Direita ou esquerda, conservadorismo ou progressismo e democracia ou ditadura fazem pouca diferença quando há um cara do outro lado tentando colocar uma bala na sua cabeça.