Crítica: O Assassino

The Killer, EUA, 2023



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★★★★☆


Desde o início da História, os “poucos” têm explorado os “muitos”. Esse é o pilar da civilização. O sangue e o cimento que unem todos os tijolos. Custe o que custar, garanta que você seja um dos “poucos”, não um dos “muitos”.

Sob a superficial história de um assassino profissional em busca de vingança, o diretor David Fincher constrói em O Assassino uma meditação sobre o perfeccionismo, a dissonância cognitiva e a economia de plataformas. A narração em off revela as histórias que “o assassino” (Michael Fassbender) conta para si próprio sobre quem ele é e sobre o que ele faz. Ao final da projeção, fica bem claro que nem ele acredita mais nessas histórias e que sua jornada não foi realmente em busca de vingança.

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Meu processo é puramente logístico, projetado para ser estritamente focado. Eu não estou aqui para escolher lados. Formar opiniões não faz parte do meu trabalho.

Desde o início, fica claro o esforço que o protagonista faz para se manter emocionalmente distante de seu trabalho. Ele projeta uma imagem de profissionalismo e precisão, analisando o mundo ao seu redor em números e estatísticas. Ele faz estritamente o que ele precisa fazer e não se preocupa com mais nada. Sua única preocupação é com a autopreservação. Para muitos, uma visão de mundo como essa pode ser reconfortante.

Porém, um erro cometido em milésimos de segundo começa a obrigá-lo a encarar a realidade. Ao contrário dos mantras que ele repete para si próprio e para o espectador, esse erro o leva a tomar atitudes cada vez mais ilógicas e inconsequentes. A primeira delas é voltar para casa, quando na realidade a atitude mais lógica em sua situação seria desaparecer e recomeçar sua vida em algum lugar onde seus empregadores jamais o encontrariam.

Proíba a empatia. A empatia é uma fraqueza. Fraqueza é vulnerabilidade.

Ao descobrir que sua namorada Magdala (Sophie Charlotte) foi torturada por assassinos que estavam em busca dele, ele aparentemente parte em busca de vingança. É aí que sua dissonância cognitiva vai começando a ficar mais clara. Ele acredita ser uma “entidade” fria e racional, mas seus sentimentos o levam a violar cada uma das regras que ele diz seguir. De repente, fica claro que ele está apenas tentando se agarrar a uma frágil ilusão de controle.

É na intensa e memorável luta que ele tem contra “o bruto” (Sala Baker) que fica evidente o quão fora de controle ele está. Há inúmeras variáveis que ele não antecipa, o que o leva a ser pego de surpresa e ter que improvisar o tempo inteiro durante uma violenta batalha de vida ou morte. Mesmo antes disso, ele vai cometendo vários erros e violações de seu código, como quando “o advogado” (Charles Parnell) morre antes do que ele esperava e quando ele tem empatia pela situação de Dolores (Kerry O’Malley).

Siga seu plano. Antecipe, não improvise. Não confie em ninguém. Nunca abra mão de uma vantagem. Trave apenas as batalhas que você foi pago para travar.

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Como muitos críticos e espectadores têm apontado, a jornada de O Assassino também pode ser considerada uma metáfora para o processo criativo do próprio diretor. Fincher é conhecido por ser metódico e perfeccionista, com uma metodologia que resultou em obras memoráveis como Seven: Os Sete Crimes Capitais, Clube da Luta, Zodíaco, A Rede Social, Os Homens que Não Amavam as Mulheres e Garota Exemplar. Porém, seu último filme antes de O Assassino foi Mank, um drama biográfico que foi mal recebido por boa parte do público e da crítica.

Teoricamente, esse foi o “erro” que o diretor cometeu e que o levou enxergar suas próprias imperfeições. Talvez, o protagonista de O Assassino represente o diretor parodiando o próprio processo criativo e sua autoimagem. Talvez, o personagem represente o diretor buscando “vingança” contra os críticos de seu trabalho. Porém, só o próprio Fincher poderia confirmar o que esse personagem significa para ele.

Vigilância é essencial. Mesmo a mente mais disciplinada pode ficar cansada. Impaciente. Apressada. Descuidada.

O que podemos fazer é explorar uma outra camada de O Assassino. O filme faz questão de ressaltar a economia de serviços que o protagonista utiliza em sua jornada. Marcas como AirBnb, WeWork, Amazon e Postmates (que é o iFood dos EUA) aparecem ou são mencionadas durante o filme, além dos vários serviços de táxis, de aluguel de carros e de unidades de armazenamento utilizadas pelo assassino.

O paralelo aqui é que, assim como as pessoas que trabalham com algumas dessas plataformas, tanto Fincher quanto “o assassino” também podem ser considerados gig workers. Por mais que se vejam como grandes artesãos de seus respectivos ofícios, eles também são trabalhadores sem vínculo empregatício que ganham a vida de trabalho em trabalho. E por mais que eles recebam bem mais do que motoristas e entregadores de aplicativos, eles também precisam lidar com um certo nível de insegurança laboral.

É tudo uma questão de preparação. Atenção aos detalhes. Redundâncias. Redundâncias. E redundâncias.

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Reservadas as devidas proporções, o diretor de filmes, o assassino de aluguel e outros trabalhadores autônomos sofrem com ansiedades semelhantes. Eles precisam garantir que seus serviços sejam bem recebidos e bem avaliados para garantir que vão receber novos trabalhos. Apesar de ser improvável que Fincher tenha dificuldades em conseguir novas produções para dirigir, sua insegurança relativa a isso está presente, especialmente depois de sua experiência com a recepção de Mank.

É aí que fica claro o verdadeiro objetivo do assassino. Ele não está realmente atrás de vingança, mas sim da ilusão de segurança. Se ele tenta eliminar todos os envolvidos com seu trabalho fracassado, é para poder se sentar ao sol, ao lado de sua namorada, e ter a certeza de que não há ninguém atrás dele. Ele busca a tranquilidade dos tolos. Sua luta é contra a ansiedade provocada pelo seu ramo de trabalho. No fim das contas, ele também se considera um dos muitos explorados.

Ele sabe que sua segurança é uma ilusão justamente devido às medidas que tomou ao longo do filme. Seu rastro de violência também deixou um rastro de pistas que pode ser seguido pelas autoridades. Por exemplo, sua forma de se esconder das câmeras de segurança, que consiste em simplesmente não chamar atenção, só funciona se não houver ninguém procurando por ele. Além disso, ele desobedece um de seus mantras (“Não confie em ninguém.”) ao confiar que seu bilionário cliente Claybourne (Arliss Howard) não irá colocar ninguém atrás dele.

A necessidade de se sentir seguro. É um ciclo vicioso. A fé é um placebo. O único caminho de vida é o caminho que você já trilhou. Se, durante o pouco tempo de vida que nos é dado, você não conseguir aceitar isso, então talvez você não seja um dos “poucos”. Talvez você seja exatamente como eu. Um dos “muitos”.

Por mais que a trama de O Assassino lembre filmes como o drama Um Homem Misterioso e os thrillers de ação A Toda Prova, Ava e A Profissional, as ideias no centro dela nos levam para produções como O Milagre e Blade Runner 2049. Esses dois filmes mostram personagens que precisam lidar com diferentes tipos de dissonância cognitiva, sendo obrigados abandonar as histórias nas quais eles acreditavam ou a criar novas histórias para atingir seus objetivos.